sábado, maio 27, 2006

Bustrofedao, parte 1 de 3

Bartlebooth é um velho milionário inglês que mora num edifício de elite em Paris, no qual comprou praticamente todo um andar. Bartlebooth está ficando cego, vive sozinho, e não teve no passado uma vida movimentada que sirva de consolo ao estado terminal. A cegueira não foi opção própria, mas a solidão e as memórias de uma existência inútil foram calculadas no momento em que, ainda jovem, previu que qualquer objetivo que traçasse seria inútil na busca por um sentido maior para si próprio, e que, portanto, deveria dedicar a vida à futilidade.

Bartlebooth não tinha apego à própria riqueza, não abusava do poder que esta lhe conferia, não tinha particular apreço por mulheres, família e amigos, ou carros, ou objetos de consumo, ou arte ou cultura ou sabedoria. Consciente de sua falta de motivação, dedicou-se a um projeto que nada acrescentasse ou tirasse do mundo, e no entanto ocupasse sua vida toda.

O projeto não deveria ter a ver com recordes. Não se tratava de um pico de montanha a se escalar ou o solo do oceano a se mergulhar. Não era pra ser heróico ou espetacular, foi pensado para resultar simples e discreto; difícil, claro, mas não impossível; controlado do princípio ao fim e absorvendo cada segundo da vida do homem que nele iria se engajar.

Começou contratando o pintor Serge Valène para ensinar-lhe a pintar aquarelas. O então jovem Bartlebooth não demonstrava nenhuma aptidão natural pela arte, o que intrigava seu mestre e tornava seu aprendizado difícil. Dez anos. Foi o que ambos precisaram para chegar a um resultado satisfatório, e o esforçado aluno saiu mundo afora com sua habilidade recém-adquirida. A cada duas semanas, e por vinte anos ininterruptos, Bartlebooth parava numa cidade litorânea do mundo e pintava uma paisagem portuária. Começou a viagem saindo da França e percorrendo os dois lados do Mediterrâneo, baixou pela África, seguiu por América do Sul, Central e do Norte, atingiu o estreito de Behring e pintou o Extremo Oriente e a Oceania, continuando pela Índia e Oriente Médio e pulando até o norte da Escandinávia de onde veio descendo pelo Báltico até voltar a Paris. À medida que completava as paisagens, enrolava-as e as enviava para Gaspard Winckler, um carpinteiro habilidoso que as montava numa superfície de madeira e cortava tudo em peças de quebra-cabeças. Quando Bartlebooth chegou, passou a montar os quinhentos quebra-cabeças, cada um com setecentas e cinqüenta peças, e nisso levaria outros vinte anos.

Completando todos os puzzles, Bartlebooth aplicaria neles uma fórmula química para desgrudar o papel das peças, e mandaria cada uma das quinhentas imagens recompostas para a cidade onde as pintou, onde a aquarela seria lavada com água do mar e detergente, retornando para o ponto que começou, folhas de papel brancas. Dessa forma completaria cinqüenta anos inteiros dedicado a uma atividade absolutamente desnecessária.

Mas nem tudo saiu como previsto. Bartlebooth, já cego, morreu em sua mesa, segurando a última peça do 439o quebra-cabeças, em formato de W, em frente a um painel quase completo com uma lacuna ironicamente em formato de X.

A história tem outros percalços, mas é essa sua linha-mestra. Muitos a consideram a história de um grande fracasso, talvez o maior fracasso individual de todos os tempos, um que Bartlebooth não conseguiria evitar mesmo que continuasse vivo, uma vez que, já cego, tinha só mais oito meses para completar os sessenta e um quebra-cabeças restantes no prazo estabelecido. Mas para um homem sem ambições como Bartlebooth, o êxito de seu grande projeto seria um paradoxo no cerne de sua filosofia, além de deixá-lo na incômoda situação de ter mais anos de vida para gastar tomando cuidado para não ser útil ou nocivo em nada, como antes conseguira em cinqüenta anos de brilhante nulidade. Por essas e outras é que discordo dos que enxergam uma visão ultrapessimista no livro Vida, modo de usar, de Georges Perec.

1 Comments:

At 11:22 PM, maio 30, 2006, Blogger Mauro said...

Só não entendi o Bustrofedao, depois leio os outros tomos.
 

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Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

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