quinta-feira, abril 13, 2017


domingo, janeiro 24, 2010

O mundo é um álbum de figurinhas

Era pra ser uma viagem de família só. Tudo bem que família e Tailândia é meio ousado. Mas muito mais ousado que isso são as agruras que vamos passar por ir a reboque de milhagem de companhia aérea.

Quem vai de milha não tem vôo direto. Se é pra ir pro outro lado do mundo então, aí a lógica da linha reta se perde por completo. Nosso mês na Tailândia, sonho acalentado há décadas, fruto do esforço de várias gerações desde a chegada dos primeiros imigrantes das famílias Rego (do japonês, se pronuncia com circunflexo no O) e Buenting (do chinês, evidentemente), nosso mês na Tailândia virou uma viagem pinga-pinga, dessas que mal você desembarca numa cidade já tem que correr pra próxima.

Pensamos todos o mesmo agora, né? Viagem perfeita! Eu também. A família, no entanto, não partilha das idiossincrasias da comunidade leitora deste blog. Por isso fiquei semanas burilando um trajeto que fosse ao mesmo tempo:
  1. Possível de ser feito com a milhagem.
  2. Plausível como viagem coerente (falhei um bocado aqui, mas a galera fez vista grossa).
  3. Dissimuladamente, uma sucessão de escalas em países ermos.
O mapa abaixo mostra todas as escalas da viagem. Vamos analisá-las uma a uma para mostrar porque as escolhi.

16 vôos em 30 dias

Ida

Houston. O hub da Continental Airlines é inevitável, mas não é de todo ruim, pois fica no 2o maior estado americano. Sem tirar o pé do aeroporto, risco da lista todo o Texas,

Los Angeles. Ponto de partida para atravessar o Pacífico e maior cidade do terceiro maior estado americano. Se algum dia eu for ao Alaska, terei conhecido quase metade do território americano sem nunca ter estado em 90% dos seus estados.

Taipei e Hong Kong. Escalas da viagem que não poderei computar, já que não poderemos sair do avião.

Cingapura. O ponto fraco da lista. Uma nação longíngua como qualquer uma fora do Atlântico. Mas dentre as asiáticas, Cingapura é uma das mais calejadas, e ainda por cima mixuruca. No mapa, o pisão pra fora do aeroporto vai ter quase o mesmo tamanho do país.

Bali. A milhagem nos deixa aqui. Não tinha vaga até a Tailândia. Mas por que Bali e não Kuala Lumpur, a família pergunta. Afinal, a passagem pra Bangkok é bem mais barata de lá.

Motivo alegado: belas praias (Atlântico, Indico, Pacífico) e templos curiosos (cristãos, muçulmanos, judaicos, hinduístas, animistas, budistas, taoístas) valem o dinheirinho a mais da passagem.

Motivo real (ultra-secreto):


Viagem

Tailândia. A razão de ser inicial da viagem, cheia de praias, ruínas, templos (budistas), trânsito, comida e pescoçudas. A verdade é que, pela lógica que a coisa tomou, poderia ter trocado a Tailândia por Myanmar, mas seria muita cara de pau.

Camboja. Não é só por ser um país ermo. Isso tem vários ali perto. É a sonoridade do nome. Cam-bo-ja. Tem algo de ridículo em se deixar dizer “Fui ao Camboja”, e esse é o espírito da coisa. Talvez por ser um país masculino que termine com “A”. Talvez sejam essas sílabas, BO-JA. Não sei. Oficialmente, vamos a Angkor Wat. Subrepticiamente, vamos pra encher a boca ao dizer “visitei as maravilhas do Camboja”.

Volta

Filipinas. Daqui começa nossa odisseia de volta. O trecho a partir de Bangkok estava indisponível. Nada mais conveniente. As Filipinas são o maior arquipélago do mundo. Um passo pra fora do aeroporto e plof, as ilhotinhas estão todas marcadas. Um ignorante em geografia pode até achar que cada uma é um país diferente.

Guam. Sem dúvida, o ponto alto da viagem. Guam, pouco mais que um arrecife no meio do Pacífico, base militar americana, 3a bandeira mais feia do mundo, será provavelmente o lugar mais esquisito que eu jamais irei na vida. Uma pena que não chegaremos na Páscoa, quando a tradição local promove uma gigantesca caça ao ovo em uma das ilhas. Ou talvez melhor assim. Como seguir a vida tendo a certeza de que o ápice já passou?

Guam fica a 2000 Km da Indonésia, a porção de terra com tamanho razoável mais próxima.

Havaí. Pode não ser grande, mas por estar no meio do oceano (Pacífico) é a figurinha mais difícil do álbum de estados americanos. Troco por quem tiver Idaho, Wyoming e mais uns 5 ali do meio-oeste.

Houston novamente, e depois, Rio de Janeiro. Ah, tédio.

segunda-feira, novembro 09, 2009

Montanhas russas x trens fantasmas

O sistema de transporte público de Copacabana é, do mundo inteiro, o que mais se aproxima da perfeição. Não é o melhor, lógico. É engarrafado, poluído, perigoso e barulhento. Mas só em Copacabana tem um ônibus indo para onde você quiser, vazio vazio, a qualquer momento que você pise na Nossa Senhora.

É um sistema de transporte surgido da superpopulação e do improviso, como a maioria das grandes invenções. Funciona como uma colméia, parece caótico para o turista, mas é absolutamente natural para o morador. E vem a prefeitura querendo enterrar uma idéia tão entranhada na nossa cultura por causa das Olimpíadas.

Em vez de tirar os ônibus das ruas, podiam proibir os carros. Que sentido faz ter carro em Copacabana se existe sempre um ônibus personalizado pra você?

Se é pra reformar, que seja direito. Segundo o antropólogo Lévi-Strauss, todo transporte público do mundo é baseado no modelo da montanha-russa, menos Copacabana. Copacabana se baseia no trem-fantasma e não sabe.

Na montanha-russa fica aquela fila enorme, e a cada 3 minutos, vem um carro novo e embarca metade. O próximo, só 3 minutos pontualmente depois. Pode ficar paradinho aí esperando.

No trem-fantasma não tem espera. Os carros vão chegando, cada um com 2 lugares, cheios ou vazios, sem parar, um atrás do outro. Tudo o que se tem que fazer é andar na mesma velocidade e pular pra dentro de um.

Lévi-Strauss sugere uma cidade inteira percorrida por trens-fantasmas subterrâneos de alta velocidade. Nenhum minuto de espera na plataforma, zero quilômetro de engarrafamento, velocidade constante em todo trajeto.

Claro que pra fazer as pessoas entrarem nessa máquina transportadora sem necessidade de paradas, é preciso colocar as duas na mesma velocidade. Por isso as plataformas de embarque seriam uma imensa reta com esteiras rolantes consecutivas, cada uma rodando 5 Km/h mais rápido que a anterior, até chegar em 300 metros de velhinhas de bengala a 100 por hora embarcando comodamente em vagões que se debruçam sobre a esteira.

O trem percorre a cidade inteira ensandecidamente, de Santa Cruz a Ipanema, você salta quando chegar a seu bairro, em esteiras que vão diminuindo progressivamente sua velocidade. E pronto, resolvido o problema de transporte da cidade. Mas isso não dá pra construir até as Olimpíadas.

sexta-feira, outubro 23, 2009

Por que não vendi todos os meus CDs

Alguns homens compram carros esportivos, outros tomam bomba, outros tomam Viagra. Cada um dá seu jeito. O meu foi acumular uma coleção de coisa de 300 CDs. Empilhados, conservados, meticulosamente catalogados por gênero, número e grau, e há 4 anos criando craca numa estante que vai do chão ao teto do meu quarto.

Mas a partir de hoje eles estão livres. Vendi tudo. Soltei-os para espalhar a boa música pelo mundo. Toda a minha estante foi desocupada.

Toda? Não! 6 discos povoados por irredutíveis gauleses ainda resistem ao invasor. Esse post é a história por trás desses discos, e porque não tive coragem de vendê-los.

1. Jukebox the Ghost – Let live and let ghosts
JtG é uma banda de indie pop que tocava na praça onde eu fazia digestão, numa bela tarde de sol em Nova York. A música era tão boa que acabei comprando o CD, o primeiro em 4 anos. E além disso era tão bacana o encarte, que isso se acrescentou à culpa latente por vender um disco que eu acabara de comprar.

2. Shu-bi-dua - 16
São os Mamonas Assassinas da Dinamarca. Evidentemente que numa língua escandinava não se entende nenhuma piada além de um eventual peido, então a caixinha ajuda a manter o contexto humorístico da coisa. E mais importante, foi presente de um bom amigo.

3. Lynyrd Skynyrd – One more from the road (25th anniversary deluxe edition)
O disco mais caro que eu já comprei. Na conversão, daria umas 100 pratas. Vem num encarte acachapante, coisa finíssima, cheio de luzes e dobras. Sério, não tinha como cogitar a possibilidade de aceitar uma oferta de 5 reais por ele.


4. Stormtroopers of death – Speak english or die
Não sou fã de hardcore, nem da filosofia niilista da banda, de se sangrar no palco e enfiar o braço da guitarra na caixa de som. Esse é um dos poucos discos que eu comprei pelo design, e pela mesma razão, não vendo. O CD é recortado em forma de serra circular, projetado pra arranhar lentamente o aparelho de som cada vez que toca, até inutilizá-lo. Gostou do som mas não quer danificar seu CD player? Tenta baixar no site deles. Vem tudo com vírus.

5. Almanaque anos 80: Nacional
A seleção é ótima, fugindo bastante do óbvio: Betty Frígida (melhor música da Blitz), em vez de Você não soube me amar, Corações e Mentes (melhor dos Titãs), em vez de Sonífera Ilha, Rebelde sem causa (melhor do Ultraje), em vez de Inútil. Mas nada que eu não faça melhor numa playlist de iPod. Já deve ter dado pra perceber que o que pesa mais na minha seleção não é o conteúdo. Os caras do marketing tiveram a sacada de simular na caixinha do CD um daqueles estojos dos anos 80, cheios de traquitanas. Vem com tampa acolchoada e 3 botões. De um sai apontador, de outro uma lupa, e do 3o a bandeja do CD.

6. Ben Bagley – Ben Bagley's Cole Porter
Esse eu mantive por uma postura ideológica. Ouvi falar do Ben Bagley num curso que estou fazendo na UFRJ: “Cultura digital e capitalismo cognitivo”. É um comediante americano famoso pelas imitações, que descobriu uma brecha formidável na lei de direitos autorais para praticamente legalizar a pirataria. Ao contrário do Brasil, nos EUA, o direito de uma música é sempre do intérprete, e não do compositor. Sabendo disso, Bagley, em protesto, resolveu regravar os discos de Cole Porter, que teriam caído em domínio público não fosse a prorrogação do copyright aprovada agora no senado americano.

Bagley imitou a voz de Porter e usou os mesmos arranjos. Na prática, é como ouvir a gravação original. Dá pra baixar tudo de graça no site dele, ou encomendar o CD pelo preço de fabricação.

domingo, agosto 16, 2009

Tuitadas de Nova York

Não uso Twitter, não vou permitir que outra ferramenta reforce o poder de procrastinação da internet. Um dia acabo me rendendo, mas até lá isso sigo apreciando a vista daqui do alto do último bastião em pé diante da enxurrada tecnológica. E disfarçadamente, tuitando no blog:

Nova York me convenceu de que dez milhões de pessoas acumuladas podem se transformar numa metrópole viável e até com várias vantagens sobre as cidades vinícolas francesas ou as vilas alpinas onde eu almejava morar.

Placar Starbucks: Camila 4x0 Rodrigo

O melhor momento de uma peça é o agradecimento final. Vem os extras, os coadjuvantes e por fim os protagonistas, se enfileiram, fazem a reverência e por fim dão as mãos sinceramente emocionados. Me sinto um cúmplice exclusivo dessa felicidade, uma testemunha do único momento autêntico do teatro, depois de duas horas de diálogo decoreba repetido diariamente pra quem quiser pagar.

Placar de Starbucks: Camila 8x0 Rodrigo

Não lembro da última vez que topei com algum conhecido andando no Rio. Mas esbarrei em plena Times Square com dois amigos. Já é a terceira vez que me acontece no exterior. Provavelmente porque aqui ficamos todos da casa pro trabalho e vice-versa, e lá circulamos na rua o dia inteiro. Se as pessoas caminhassem a esmo pela cidade metade de quando estão turistando, velhas amizades se encontrariam todos os dias. E claro, a rua seria um inferno.

Placar de Starbucks: Camila 10x1 Rodrigo

Meu pai disse que em Manhattan existem 250 Starbucks. Objetivo: achar todos.

Placar de Starbucks: Camila 12x4 Rodrigo

Achamos uma loja de bandeiras num shopping no pier. Alguns anos atrás eu entraria em estado de graça, compraria todas que pudesse. Mas depois da internet já não dá pra se encarar uma loja dessas como a oportunidade da sua vida de arranjar a bandeira do Turcomenistão. Um clique no flagsoftheworld.com e pronto, colecionar qualquer coisa perdeu a graça.


Placar Starbucks: Camila 15x9 Rodrigo

Comprei uma camisa do Obama e um binóculo. Alcance de 18 Km.

Placar Starbucks: Camila 17x11 Rodrigo

Fiquei um pouco frustrado com o Central Park. Muito paisagístico e tal, mas assim como o Harlem, nenhum Starbucks.

Placar Starbucks: Camila 18x11 Rodrigo

Meus novos heróis da música pop para a próxima semana, ouvidos de graça e de joelhos, num concerto na Union Square:



Placar Starbucks: Camila 21x12 Rodrigo

Estou sentindo que essa contagem de Starbucks está começando a atrapalhar a viagem. Estamos prestando mais atenção em letreiros verdes que no resto da cidade, e ainda faltam mais de 200.
Placar Starbucks: Camila 22x14 Rodrigo

Fomos num restaurante etíope. A comida não tem nada demais, a diferença é a forma de servi-la. Não tem garçom. Você pede e ela chega num para-quedas, dentro de um engradado da ONU.



Placar Starbucks: Camila 23x16 Rodrigo

A viagem já está na metade. Se quisermos mesmo completar todos os Starbucks, vai ser preciso jogar em equipe. Camila é mais atenta, vê alguém com canudinho verde e já sabe que tem um nas redondezas. Já eu sou bem menos míope. Juntando o faro dela com meus olhos de lince, somos uma máquina detectora de Starbucks.

Contagem de Starbucks (juntando nossos escores): 52 de 250 — vejam a melhora, 13 num dia só

Percorremos a 1a e a 2a avenidas de ponta a ponta, costa grudada com costa, para ter uma visão de 360. 22 Starbucks encontrados. Amanhã é dia da 3a e 4a.

Contagem de Starbucks: 74 de 250

Comprei outro binóculo. Mais tarde explico.

Contagem de Starbucks: 107 de 250

Há Starbucks nos lugares mais inusitados. Um no segundo andar do saguão do Empire State, outro na estação de metrô de Battery Park, um terceiro exposto no MoMA, servindo sopa Campbell. Estamos entrando em cada loja, cada buraco, desencavando todos.

Contagem de Starbucks: 140 de 250

Fui na Macy's, e além de achar mais três Starbucks, comprei terno, Rayban e pasta preta. Disfarçado de executivo, procuro Starbucks nos lugares restritos a turistas. O golpe é sempre o mesmo. Passo o RioCard na catraca eletrônica da portaria (todo prédio em Manhattan tem uma), e quando o acesso é negado, culpo a máquina e peço ajuda pro segurança, porque afinal estou atrasado. Foram 46 Starbucks dentro de prédios empresariais, bolsas de valores, tribunais e juntas comerciais.

Contagem de Starbucks: 189 de 250

Por que estou fazendo isso? Eu nem gosto de café.

Contagem de Starbucks: 203 de 250

Hoje fiquei no hotel, na internet. Estou divisando um plano de emergência. Minha irmã foi à caça sozinha, e sem minha ajuda, achou apenas 10 Starbucks.

Contagem de Starbucks: 213 de 250

Tem um estande do Starbucks na catedral de St. Patrick, atrás do altar. É verdade, pode checar na Wikipedia.

Contagem de Starbucks: 228 de 250

Ainda 22 Starbucks faltando e hoje temos que pegar o avião. No aeroporto (mais 2 Starbucks, mas não conta, por que é fora de Manhattan), o comissário diz que nosso vôo teve overbooking. Quer fazer embarcar ou prefere um reembolso de 400 dólares para adiar um dia a data do vôo? Claaaro que preferimos.

Contagem de Starbucks: 239 de 250

Dessa vez não teve overbooking, e ainda faltam 11 Starbucks. Hora de botar o plano em ação, aquele elaborado no dia em que fiquei no hotel usando a internet. Imprimi duas cópias do Googlemaps indicando a localização de cada Starbucks de Manhattan. Além disso, 2 binóculos de longo alcance a postos nos assentos 46A e 46G, em janelas opostas bem atrás da asa. O avião inclina pra cá, eu vejo os 5 Starbucks restantes em Uptown. Inclina pra lá, e Camila vê os 5 de Downtown. Procuro desesperado o último Starbucks de Midtown. Ele está bem embaixo do avião não há ângulo.


Na minha cabeça, vêm as terríveis imagens daquela vez que quase zerei o Tartarugas Ninja do fliperama. O Destruidor já piscando de tanta bastonada (joguei com o Donatello) e eu procurando a última ficha na pochete. O Continue esgotando, 4, 3, 2. No 1 eu coloco a ficha na máquina, ela demora a cair, o contador chega ao zero e o jogo recomeça na primeira fase.

Surge a idéia. O avião já cruzando o Hudson, e eu começo a mirar o binóculo nos prédios espelhados abaixo do Central Park. Foco no 42o andar da Trump Tower. Uma das janelas está inclinada pra baixo, no ângulo ideal. Lá está ele: 34a com 6a, apenas um reflexo do S salvador, não sei se de Star ou de buckS, entre o McDonalds e a caixa de ar-condicionado ao lado que não me deixa ver a continuação da rua. A letra, verde em relevo sobre uma placa preta, é inconfundível. De relance, vejo um mestrando de Ciências Políticas, fechando um Mac enquanto sai da loja com o copinho de canudinho verde. Não há mais dúvidas.

sábado, julho 04, 2009

Curtinhas do Nordeste

O centro de Recife é como o do Rio de Janeiro, mas sem o que lhe resta de dinamismo econômico. Um farelo de prédios coloniais ilhados numa enorme Uruguaiana.

Já Caruaru é como o centro de Recife, mas sem os prédios coloniais.

* * *


Ainda não vi praia mais bonita que a do Curral, ao lado de Pipa, no Rio Grande do Norte. Os golfinhos pulam num mar morno e calmo, se bobear quase doce. Como moldura, 30m de falésias vermelhas caindo em arco sobre o coqueiral na areia deserta.

* * *

Mas o melhor momento da viagem durou só alguns minutos, já voltando pra Recife, no início da costa paraibana. Nosso carro chacoalhando por uma estrada de terra batida em meio ao canavial, procurando à noite uma entrada para voltar à BR. Só o que se via eram luzes vermelhas no horizonte, mais de 50, quase em fila, pairando a 40m do chão.

Dado o vazio da área, não podia ser linha de transmissão. Podia ser um campo de pouso, talvez não apenas para aviões, pois havia mesmo um aspecto de contatos imediatos rondando no ar.

A estrada cortava o canavial direto em direção às luzes, e mesmo cada vez mais perto, a noite não deixava ver nada que segurasse aqueles pontos flutuantes.

Paramos o carro em meio a elas. Pairando todas à mesma altura sobre nossas cabeças, mas não totalmente alinhadas. Piscavam rapidamente em intervalos regulares. Mesmo debaixo delas, ainda não dava pra divisar que estrutura as erguia.

Não é a luz que está piscando, — disse o Vítor. — É uma pá que está passando na frente.

E era mesmo. Com esforço, dava pra ver brevemente o contorno da hélice quando a luz vermelha a iluminava por trás. E a partir dela, adivinhar as formas de uma usina eólica, no contraste sutil entre os tons de escuro. Com seu compasso majestoso, ainda que apenas sugerido pelo eclipse ritmado na luz vermelha. 50 delas empinadas naquele canavial ventoso, compondo um cenário místico que a gente contemplou em silêncio, num estado de hipnose.

E aí o Quintanilha começou a reclamar que ali era perigoso, nós fomos embora e o melhor que eu consegui foi essa merda de foto. Dá pra ver alguma coisa?

sábado, abril 18, 2009

The Kinks


E já que estamos falando de transgressores modernos, não custa prestar homenagem ao pai de todos. O grupo inglês The Kinks foi o mais do contra de toda a contracultura, justamente por não tê-la seguido.

Os Kinks eram ainda um entre dezenas de protoBeatles que surgiram na Inglaterra quando, sabe-se lá por quê, tiveram o visto americano negado. Impedidos de entrar em contato com a psicodelia, usaram a tradição inglesa como fonte de inspiração.

Agora imagina a coragem necessária para, sem abrir mão do rock, subverter a subversão e se apegar aos valores desprezados por todas as outras bandas. Em Village Green Preservation Society, o vocalista Ray Davies defende a geléia de morango, a virgindade e o Pato Donald. Já na sutil e bizarra Autumn Almanac, a melhor da banda, ele reclama sobre suas costas reumáticas numa música sobre jardinagem.

Os Kinks também compunham canções de amor. Amor livre, sexo tântrico? Claro que não. Party Line, por exemplo, é pesada, ganchuda e fala sobre… tele-amizade! É mole?

Na época do flower power, ninguém entendeu e os melhores discos quase não venderam. Só hoje se constata que as músicas dos Kinks não envelheceram, ao contrário das tão celebradas bandas psicodélicas.

Pra quem quiser conhecer, segue o meu top ten, com links para o YouTube:

1. Autumn Almanac
2. Dead End Street
3. Days
4. Sunny Afternoon
5. Party Line
6. Lincoln County
7. Starstruck
8. Village Green
9. Harry Rag
10. Alcohol

* * *

Outras bandas sessentistas com posts no blog:
- Beatles
- Beach Boys

domingo, abril 05, 2009

Adeus, Google

Este post provavelmente só vai interessar a designers.

Parece que duas semanas atrás, o diretor de design do Google pediu demissão. O que a princípio parece loucura, ele defendeu com argumentos bastante razoáveis em seu blog. O post obviamente repercutiu horrores, com boas análises sobre a maneira como o Google encara o design gráfico, aqui e aqui.

Assino embaixo de ambas, mas quero falar de um detalhe menor do post demissionário, quase um lapso escapulido numa distração: o autor revela que foi o primeiro designer gráfico da empresa, contratado em 2005. O Google passou oito anos sem nenhum profissional da área. Isso me leva a pensar imediatamente que:

Uma empresa pode crescer a ponto de se tornar a mais poderosa e relevante do mundo prescindindo de designers gráficos.

Será, então, que design gráfico é realmente decisivo? Aprendemos a achar que quando a comunicação visual debuta em um setor "virgem", a empresa que optou por se fazer valer do bom design ganha mercado da concorrência. Mas e quando o mundo está saturado de design gráfico, o que acontece? Meu palpite:

A ausência de design gráfico é um dos diferenciais do Google.

Afinal, o requinte visual está tão associado ao marketing, e este, tão associado à mentira, que talvez uma página branca e um logo WordArt acabem representando o oposto: verdade e confiança (e o famoso slogan "Don't be evil" só ajuda).

Pode ser por estar imerso demais na profissão, mas há algum tempo tenho a impressão de que, se o design gráfico não for absolutamente brilhante, a alternativa mais eficaz é a ausência de design gráfico (desde que respeitado o bom senso, evidentemente). E como eu não sou capaz de produzir design nesse nível (e nem você, seu convencido), acho que essa foi a principal razão de eu ter mudado meu foco de atuação para o design interativo.

Algumas vantagens do design interativo sobre o design gráfico:

  1. É mais recente. A maior parte do trabalho na área é feito por amadores, e mesmo o que é feito por profissionais geralmente é ruim. Ter um design interativo medíocre ainda é melhor do que não tê-lo. E mais: ser um ótimo designer interativo não é tão difícil assim, pois ainda há muitas idéias a serem exploradas.
  2. Não se percebe a ligação entre o design interativo e o marketing, portanto, ninguém vê como a atividade como má. E o detalhe sórdido: um bom design interativo faz muito mais pelas vendas de um produto do que um bom design gráfico.
  3. Os certos e errados são mais fáceis de serem e mensurados. Eu gosto de deitar na segurança dos números para embasar uma decisão de design. Mas isso é meu lado do contra falando, tenho certeza que estaria aqui reclamando que não posso viajar na maionese se fosse engenheiro.
* * *

Posts relacionados:
- Marks & Spencer
- Eu não gosto de design
- Pubidê - Publicitários Idealistas

segunda-feira, março 23, 2009

Manual do transgressor moderno


Se você é como eu, então é do tipo que troca de opinião de acordo com o interlocutor — só que ao contrário. Você é um do contra sistemático, compulsivo. Ao lado de um banqueiro, você é comunista, perto de um cientista, você defende a criação divina.

Podem te achar inteligente e podem te taxar de mala, o segredo está na dose. Não digo pra você inibir seu dom, mas não o banalize. Não desperdice a lábia justificando o desmatamento e os neonazistas. Se bandear automaticamente pro lado oposto só pra evitar o consenso não te faz um transgressor. Você é tão rebanho quanto os carimbadores da unanimidade.

Quer ser do contra, seja comedido. Escolha um consenso latente, sobre o qual ninguém escreve no jornal. Pode ser uma trivialidade. Aí faça o oposto e contemple na cara das pessoas o espanto de descobrir aberta uma porta que elas achavam que era parede.

Algumas sugestões:

1- Use bigode.
Hoje cada um faz o que quer com os pelos da cara. O conservador raspa, o relaxado deixa solto, o ousado cria cavanhaque, costeleta, até suíças. Mas ninguém abaixo dos 40 deixa só o bigode. O banal virou a última fronteira. Em 50 anos, o último bigodudo terá morrido, e o mundo ficará de buço pelado. Cresça um belo bigode, e saboreie a espuma do chope horas depois do copo vazio.

2 - Vire católico.
Ah, está tão na moda largar o catolicismo. Cada vez mais gente se abarrota em cultos evangélicos. Os artistas estudam a cabala, viram budistas ou espíritas. Dizem que a Igreja tem muitos crimes no currículo, mas as outras religiões também devem ter matado muitos judeus, é só olhar de perto. E você que é ateu, não me tire o corpo fora, que muitos genocídios já foram cometidos em nome da deusa razão, é só dar um pulinho na União Soviética. Vire católico, no ritmo da debandada é capaz de você ser o único restante para ser o próximo papa.

3 - Batize um filho com o seu nome.
As pessoas têm sido bem criativas ao nomear a prole. Tudo pra evitar que haja outros iguais na escola. As classes alta e baixa evidentemente têm uma concepção bem diversa do que seja um bom nome para o rebento. Mas repetir o nome do pai é considerado cafona não importa a origem. Você pode e deve usar o seu filho como parte do seu libelo contra a arbitrariedade da moda. Chame-o de Júnior, e a cada vez que ele voltar surrado do colégio, você terá certeza de que a sociedade tem muito a aprender com você.

4 - Batize uma filha com o nome da sua esposa.
Se você for um do contra radical e receber a graça de uma filha mulher, não deixe escapar a chance de dar-lhe o nome da sua esposa. Não há precedentes para tamanha transgressão. Observe o estupefato do escrivão tentando decidir se a chama de “Maria da Silva Filha”ou “Maria da Silva Júniar”. Deixe que ele escolha. Você já ganhou a parada.

domingo, março 15, 2009

À procura do wok perfeito

Essa viagem pra Europa de que voltei agora teve 3 objetivos. Na verdade 2, e mais um de bônus, mas depois explico isso. Importa é que dei com os burros n’água neles todos.

O primeiro era matar as saudades da Paula. E a gente teve, sim, um mês fantástico, mas é que nem beber água do mar, você dá um gole e já está com sede de novo.

O segundo era arrumar um emprego. Consegui duas entrevistas, lugares bacanas, gente legal que disse que me chamaria para freelas à distância assim que surgisse a oportunidade (não era emprego, mas ganha em euro, é um começo). Passaram dois meses e continuo aqui esperando.

O terceiro veio de brinde, em Lille, durante uma das entrevistas. Me levaram a um restaurante tailandês com uma proposta inusitada:

1. Encha sua cumbuca à vontade com carnes e legumes no bufê;
2. Escolha um molho e condimentos e dê a cumbuca para o cozinheiro;
3. Espere enquanto ele cozinha tudo em fogo alto no mesmo wok — uma panela tailandesa grande e funda;
4. Coma com arroz.

Não é só que fosse muito bom. O tipo de cozinha -— wok — era o mesmo do meu restaurante favorito em Berlim, que servia uma comida tão diferente que até então eu não conhecia nenhum paralelo. O cosmopolitismo não ajudava: cozinheiros americanos, decoração havaiana, temperos asiáticos, endereço alemão. Que diabo era aquilo? Não sabia, mas nunca tinha comido nada igual. Três anos depois, encontro algo similar.

O wok de Lille. Repare na tigela de arroz ao lado da cumbuca.

Mas o wok -francês, embora gostoso, não chegava aos pés do alemão. Começa que era self-service, jogando pra você a responsabilidade de misturar sabores desconhecidos. E ainda por cima, meu entrevistador não misturou o arroz dele na cumbuca. É disparado a melhor coisa do wok, deixar o arroz se impregnar no molho de especiarias, pra depois raspar do prato os blocos empapados misturados aos restos de carne e legumes.

Mas como ele não misturou, também eu não misturei. Não comi o wok perfeito. Nunca vou voltar a Lille de novo, então precisava achar um wok em Paris.

Internet. Tinha um, só um, perto da Bastilha. Mas antes, Amsterdam, que já estávamos de saída.

Amsterdam é linda, com suas lojas de croquete iguais aos do Alemão e suas -— surpresa — dezenas de wokerias fast-food.

Mas não era o paraíso dos woks. Woks fast-food cobram por cada ingrediente e não passam de um yakisoba fajuto. Saímos da horrível Amsterdam 3 dias depois sem ter comido um só wok que prestasse.

Wok fast-food de Amsterdam. Mesmo na foto publicitária, você vê que está mais pra yakisoba. E nem cumbuca eles dão, que vergonha.

Em Paris seria diferente. O restaurante era elogiadíssimo. Era caro. Jantar de despedida. Comemos entrada e tudo. A cumbuca já vinha com arroz dentro. No bufê, soubemos escolher melhor as carnes e legumes. Coloquei gergelim por cima. Paula e eu comendo com fúria, suguei cada arroz encharcado no molho de coco.

O wok de Paris. Mais do que aprovado, apesar dessa aparência de vomitado.

Saímos felizes e empapuçados, mas ainda assim, nunca seria como Berlim. O wok alemão, três anos depois, virou mito. Nunca nenhuma comida no mundo vai alcançá-lo. Meu consolo era que ao menos estava em melhor companhia.

O wok berlinense, imbatível. Na foto parece vegetariano, mas acredite, essa cumbuca é mágica.

quinta-feira, março 05, 2009

A História é um romance

Um dia eu disse que o melhor da História são os grandes marcos: tomada de Constantinopla, assassinato de César. Na época eu tentava me contrapor aos chatos que querem evitar a decoreba de datas e nomes nas aulas de História. Datas e nomes são a alma da História.

Acaba que as crianças ficam reféns dos porquês (não sabe, chuta crise agrária, a gente dizia), e é por isso que no colégio eu me via na situação bizarra de adorar História, a musa, mas não gostar de História, a disciplina. Cheia de porquês vomitados. Crise agrária. Colapso do sistema feudal. Blergh.

Mas lendo os Atlas da História Mundial, descobri que mais fascinantes que os grandes marcos, e obviamente muito mais interessante do que os porquês que explicam o dia-a-dia, é estudar as pontes entre os momentos históricos.

Ponte, na música, é a estrofe que liga o final ao início da canção. Em Hard Day’s Night, por exemplo, são os versos que reintroduzem o refrão sem quebrar a melodia:

When I’m home / everything seems to be right / When I’m home / feeling you holding me tight!

Em História, a gente só estuda os refrãos. Momentos estanque, coerentes no seu todo, mas é raro entender como a coisa flui para o momento seguinte.

Por exemplo, vamos lá pro início, quando os homens caçavam com pedra polida e faziam pintura de dedo em Lascaux. Como eram engenhosos esses primitivos, já sabiam até esfregar dois pedaços de pau pra fazer fogo. Aí perdemos o bonde e só voltamos a alcançá-lo no próximo capítulo, quando já estão erguendo pirâmides e zigurates no Oriente Médio. Peraí, o que aconteceu nesse meio?

Agora eu sei. Obedece uma lógica impecável que passa pela invenção da agricultura, sedentarização, poder central para controlar a população crescente, formando cidades-estado e expansão da influência dessas cidades-estado, formando impérios.

A Suméria não era uma civilização coesa, mas um amontoado de cidades-estado independentes de mesma língua que se matavam atrás de mais territórios. Às vezes uma delas — a Babilônia, por exemplo — crescia além da conta e fundava um império.

Fácil e lógico, não é? Vamos ver se os produtores de Lost vão resolver os mistérios com essa elegância toda.

Outro exemplo, agora mais específico. A Rússia. Você nunca ouviu falar dela até o Congresso de Viena, quando de repente, descobrimos uma jamanta poderosa e maior do que o resto da Europa inteiro. Como se formou esse império? Sabe como? Colonização viking! Não é o bicho?

Os vikings desceram os rios que desembocavam no mar Báltico e fundaram um estado com capital em Kiev, onde antes só havia povos nômades. Plantaram a semente da Rússia atual.

“Eu gosto de História porque pra mim ela é um grande romance”, é uma frase que podia ter sido dita por um filósofo, mas quem diz é meu pai. E eu concordo com ele. A História humana dava um puta livro: antes, meu maior interesse era o beijo do herói na mocinha. Mas o périplo para chegar na masmorra do castelo é que é a alma do romance.

E claro, sempre tem o chato que quer saber por quê os dois se amam, se é uma imposição social ou uma reação química causada pela compatibilidade de cheiros. Crise agrária, pode chutar.

domingo, março 01, 2009

Agoniza mas não morre

Eu podia dizer que estava viajando, mas isso só explica metade dos dois meses sem notícias. Na verdade, dava até pra ter blogado durante a viagem (tem wi-fi de graça nos albergues da Romênia), mas você tem que entender que depois de 4 meses sem ver sua namorada, e diante da perspectiva de continuar afastado nos 10 meses seguintes, escrever em blog cai pra último na sua fila de prioridades.

Já o outro mês ausente é culpa da anestesia mental que me acometeu depois de voltar (saudade? choque térmico? pré-carnaval?) e que já esta mais que na hora de espanar.

Passei o mês inteiro obcecado por Lost e Civilization. Dediquei todo o meu tempo livre à fuçar a Lostpedia e levar os incas à conquista do mundo.


Mas agora saí dessa. Agora reservei as horas vagas pra fazer algo de útil: aprender toda a História mundial. Estou com esses dois livros (um pra corroborar o outro) que se dedicam a contar a saga humana, do Paleolítico ao Obama. O nome dos dois é igual: Atlas da História Mundial. É como um adesivo de nicotina, porque funde em doses controladas os dois hobbies anteriores.


Com Civilization, o paralelo fica evidente. Ok, não sou mais eu que controlo a História, mas sempre gostei mais do pano de fundo do jogo que do gameplay. E Lost talvez concentre mais mistérios do que a História Humana, mas pra mim, o reino búlgaro que floresceu no meio das estepes russas é tão fascinante quanto um galeão encravado na floresta tropical.

A Volga Bulgária, um reino búlgaro independente do que se formou na Europa. Não sobrou nada da Volga Bulgária depois da invasão dos mongóis.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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