sexta-feira, novembro 04, 2005

A morte do terceiro inquilino

Tem gente que gosta de História e gente que não gosta. Entre os que gostam, a maioria faz ressalvas à porção decoreba da matéria. Mas tem também quem se interessa menos pelas causas e conseqüências da descoberta do Brasil, do que pela hora e minuto exatos em que o Monte Pascoal foi avistado, ou o marujo específico que teve o privilégio de ser o primeiro a ver terra enquanto Cabral tomava vinho em sua cabine, ou o índio que notou antes de todo mundo as caravelas chegando (e em contrapartida descobriu Portugal). Remando contra os professores de história modernos, que pedem para os alunos esquecerem nomes e datas, essa gente é atraída pela luz própria do fato isolado, seus dados concretos, números, particularidades e coincidências, desprezando todos os séculos de tédio em que nada acontece. Nada do que vem antes e depois nos diz respeito, queremos só os pontos de virada, quem, quando e onde, e refletimos essa postura em nossas próprias vidas.

Vida, período exato entre o nascimento e a morte? Ou entre a inseminação e a decomposição? No primeiro caso, está valendo só quando corta o cordão umbilical ou já quando a primeira nesga de bebê entra em contato com a atmosfera? Em que hospital, que banco de táxi, que signo zodiacal regeu o trabalho de parto? E ao morrer, quanto tempo levou pra alguém perceber, foi um atropelamento ou precisou de um mês e meio até os vizinhos sentirem o mau cheiro? E não só início e fim, a vida é cheia de marcos históricos entre suas extremidades. Sendo que a de cada um só diz respeito a si mesmo, então podemos estipulá-los segundo critérios próprios e contruir uma rica e tumultuada história para o nosso umbigo.

Demarquei, por exemplo, o dia de domingo último, 30 de outubro do ano em questão, entre seis e oito da noite pelo fuso de Berlim, como o momento da minha transição para a maturidade. Nesse dia, eu e Ricardo executamos o outro inquilino aqui de casa.

No meu apartamento moram três pessoas, já devo ter mencionado o terceiro, embora não costume falar muito. Ele mora informalmente, a proprietária nunca ficou sabendo. Clandestino seria a melhor palavra, mas ele não gosta. Tudo bem que o cara é calmo e se contenta em dormir na cozinha, mas mesmo estando aqui desde abril, não se ofereceu sequer uma vez pra rachar o aluguel, não divide o dinheiro das compras, não lava a louça, não cozinha. Também não reclama e não incomoda, é verdade, às vezes até me esqueço dele, mas resolvemos acabar com essa folga, resolvemos devorá-lo:

Senhoras e senhores, apresento-lhes o frango. Frango, te apresento a panela; hora de morrê, fio duma égua, hora de ser tirado do freezer onde tu ficou sete meses congelado, hora de ser esgarçado e untado com manteiga, envolvido em papel alumínio e levado ao forno por uma hora, sendo a cada quinze minutos regado com o próprio líquido de cozimento. Hora de, já morto, ser servido e ter suas articulações quebradas com a tesoura de destrinchar, separado em peito, asa, coxa e sobrecoxa, e ser comido com a voracidade das cavernas de quem não almoçou e está jantando às oito da noite, com a mão, com a faca, com o pé, com a cara lambuzada; frango, você já era.

Tem gente que deixa passar a vida inteira e não faz um frango assado. Esses nunca tiveram a sensação de cozinhar de verdade, como pra um almoço de família, sem a culpa constante de achar que se está só arrumando um jeito de não passar fome. Podem dirigir uma multinacional, ter quinze filhos e cabelos brancos. Mas se nunca fizeram um frango, pra mim não são adultos.

5 Comments:

At 4:51 PM, novembro 04, 2005, Blogger Mauro said...

Vai tirando onda, quero ver você fazer uma quiche.
Lembranças do tempo em que uns 6 caras juntos não conseguiram nem acender a churrasqueira.
 

At 6:54 PM, novembro 04, 2005, Anonymous Anônimo said...

finalmente vc desenterrou esse frango... mas afinal, ele ficou comestivel? vc e o ricardo continuam com uma boa saude? espero que sim... mamae ficaria desesperada se soubesse que um frango te matou...rsss
bjos lety
 

At 8:51 AM, novembro 05, 2005, Anonymous Anônimo said...

o seu amigo está certo... quiche é muito mais difícil! Frango não muito jetio de ficar ruim.

Vcs fizeram farofa pra acompanhar?

=)


ps: Não se preocupe com a Noviça Rebelde... minhas amigas austríacas nunca tinham nem ouvido falar desse filme...

bjs
 

At 1:00 PM, novembro 05, 2005, Blogger Rodrigo Rego said...

o dia que vc me provar que já fez um quiche eu faco um tb.

confissao em relacao ao frango... comemos e depois fomos num show. já no caminho do metro eu nao tava me segurando. mas achei que dava pra aguentar. nao deu. tive que parar no meio do caminho, achei uma pizzaria as pressas e foi lá mesmo, melhor do que nas calcas.

mas bom o frango ficou. tiramos fotos.

o ricardo aguentou mais uns vinte minutos, maslogo depois tb precisou ir pra igreja de todos os bebados.
 

At 7:58 PM, novembro 05, 2005, Anonymous Anônimo said...

Por falar em Ricardo, cadê este menino?

Quer falar pra ele aparecer em algum lugar, que eu tô com saudades dele, por favor?
 

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Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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