domingo, abril 16, 2006

Pesadelos Ciclicos

Assisti uma vez a um programa que demonstrava o papel do sonho na estabilidade psicológica humana. Funcionava assim: toda vez que o grupo de testes entrava naquela fase do sono em que os sonhos começam, eram acordados. Pessoas perfeitamente saudáveis, ao serem impedidas de sonhar, viravam completos rabugentos em dois dias, e depois da quinta noite sendo pontualmente despertados na hora h, sofriam alucinações, tonteira, perda de memória, sintomas que aos poucos levariam à esquizofrenia. Isso acontece porque, dizia o pesquisador, é sonhando que as pessoas resolvem os problemas que atormentam seu subconsciente durante o dia. Se é isso mesmo, morro de medo de saber o que o meu subconsciente anda aprontando.

Tive pesadelos horríveis do início do ano pra cá, todos envolvendo a angústia que se abatia em mim depois de praticar um ato criminoso. O crime não era o mais importante, às vezes sequer acontecia no tempo presente do sonho. Mas o remorso, ele sim me deixava maluco.

No primeiro dos sonhos, eu matava um amigo. Eu tinha uma arma na mão, ele estava do meu lado, e eu, sem que ele tivesse me prejudicado, traído minha confiança, comido minha mulher, nada, dava-lhe um tiro. Pou, na testa, e caía morto. Um instante minúsculo de desatino que me marcaria por toda a vida. Réu confesso, eu sofria com a barbárie do meu ato, que mudara a opinião de todos sobre mim. O único que parecia compreender a angústia de ser visto como um monstro pela sociedade era o próprio amigo morto, cujo fantasma vinha me visitar pra dizer que me perdoava – o que só aumentava minha culpa. Esse foi o pior dos sonhos.

No segundo, um outro amigo tentava roubar um carro, e eu sem a menor clemência aplicava-lhe uma chave de braço e o arrastava até a delegacia. Depois de delatá-lo, me atormentava com os horrores que ele sofreria na cadeia, e me penalizava por tê-lo entregado a um destino muito pior do que ele mereceria.

O terceiro pesadelo acontecia quando eu subitamente me dava conta de que um ato cometido no passado era na verdade desumano. Anos antes, teria eu participado de um grupo que decepara o dedo de um sujeito por brincadeira, e só muito tempo depois percebi o tamanho da atrocidade. Mas aparentemente apenas eu entendia assim. O resto do grupo continuava de consciência limpa, a própria vítima da tortura dizia que o dedo, dia mais dia menos, cresceria de novo. E só eu, encolhido no canto do quarto com os diabinhos circulando em volta, sofria da culpa que não atingia mais ninguém.

O último deles aconteceu anteontem. Judicialmente, esse é o crime mais brando, e talvez por isso mesmo, o que teve a reação mais descabida. Um cara que visitava minha casa descobriu um caderninho onde eu redigira estrofes falando mal de boa parte dos meus colegas de classe. Em tom de escracho, xingava pesado, sem aliviar o tom pra muita gente. O cara catou o caderno e mostrou pra turma, que, liderada por ele, foi unânime em me censurar, demonizar, me fazer de gato e sapato. A coisa se sucedeu pra mim como uma hecatombe, me vi privado de amizades importantes e sem chance de perdão. Meu argumento de que eu tinha apenas transcrito o que todo mundo de vez em quando fala por trás um do outro não funcionou. O veredito debochado assinado da minha pena era muito mais permanente que qualquer comentário maldoso, pois este não tinha sido sacramentado no papel.

Depois acordei. E só então reparei que esses sonhos eram cíclicos. Sonhos, disse o programa de televisão, resolvem problemas. Pois cada sonho resolvia o problema do anterior, mas lançava um problema novo para ser encarado pelo sonho seguinte. Senão vejamos: No primeiro eu mato um amigo no impulso, e me sinto injustiçado por ser julgado pela sociedade apenas por esse momento de desatino em que apertei o gatilho, sem que meu verdadeiro caráter fosse levado em conta. Em seguida sou eu que represento o papel dessa sociedade cruel, ao mandar um amigo pra polícia por um crime ainda menor do que o meu, e me transtorno com minha atitude. No terceiro sonho, tanto a sociedade quanto a vítima, e até os meus comparsas, sequer tomam conhecimento do crime cometido, o que só ressalta a minha culpa. No quarto, pra contrabalançar, o crime é bem menor, mas a reação ao meu redor é desproporcional, inflingindo-me uma pena que não merecia.

Meu subconsciente está se retroalimentando. Isso é sinal que estão me faltando preocupações na vida acordada. Sem nada pra trabalhar durante o sono, minha cabeça está inventando seus próprios problemas, pra me poupar de alucinações quando eu estiver na rua. Mas agora as preocupações devem estar voltando. Porque o último pesadelo fechou o ciclo, o problema que ele deixa sem solução é o que é abordado no sonho do assassinato. O cara que acha meu caderno de estrofes debochadas e lidera o boicote contra mim é o mesmo que toma uma bala na cachola. Um bom motivo pra eu matá-lo.

5 Comments:

At 10:12 PM, abril 19, 2006, Blogger Rodrigo Rego said...

?
Não entendi nada. Mas se um dia eu entender e não gostar, vc vai pro caderninho!
 

At 10:46 AM, abril 23, 2006, Anonymous Anônimo said...

Segundo minha irmã - e eu não sei de onde ela tirou isso - os sonhos são pensamentos de todos os tipos (de desejos a preocupações ou simplesmente coisas que aconteceram) que se misturam e voltam à nossa cabeça inconscientemente. Ou seja, as coisas que nos tocam, de alguma forma, voltam em forma de sonho. Normalmente são preocupações com nossa própria vida, nosso comportamento.
Quando você escreve "eu sofria com a barbárie do meu ato, que mudara a opinião de todos sobre mim." isso pode significar o por quê desses seus sonhos, sempre de julgamentos. Talvez tenha algo te preocupando a esse respeito sem resolução até agora.
Mas isso é segundo a minha irmã. Porque não sei onde entram minhas preocupações pessoais quando eu sonho que estou fazendo cooper e passo pelo Médice e depois pelo Geisel. (Tá, tou sendo incompleta, o sonho foi mais do que isso...) ;)
Bjo.
 

At 12:12 PM, abril 23, 2006, Blogger Rodrigo Rego said...

Prefiro não acreditar na sua irmã, e pensar que não tenho nenhum problema interno com julgamentos. Sua irmã só fala besteira.

Agora, Lili, já pensou, de repente os presidentes da ditadura são recorrentes nos sonhos de todo mundo! Só que vc é a única que sabe reconhecê-los quando eles passam por vc =P

bjo!
 

At 1:44 PM, abril 23, 2006, Anonymous Anônimo said...

Ah, quer dizer que esses nomes de rua também foram nome de gente?
 

At 5:18 PM, abril 24, 2006, Anonymous Anônimo said...

Será?

Eu tive dúvidas, no sonho, se era mesmo o Médice, mas o Geisel eu tenho certeza que era. Nunca mais vou esquecer a cara daquele homem. Como era feio, meu deus...

Você já sonhou com algum presidente? Nem com o Gegê? Você lembraria do Gegê...

E é verdade. Minha irmã fala muita besteira mesmo. Não a levemos em consideração.

Bjo.
 

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Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

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