quarta-feira, outubro 08, 2008

Por que não escrever ciência ficcional

A maior dificuldade -— aliás, impossibilidade — de se fazer uma obra de ciência ficcional (lembram? como o livro de química básica inventada deste post) é não cair: 1- no tédio e 2- na falta de imaginação.

Pois um livro científico ficcional é de qualquer jeito um livro científico, o que o torna quase que por definição massante, impossível de se acompanhar com o mesmo tesão de um romance.

Além disso, e bem mais grave, é que a provável falta de conhecimento do autor vai acabar tornando sua obra rasa. É preciso ter total domínio de um tema para poder subvertê-lo. PNo caso da química inventada, provavelmente há que se saber a fundo não apenas química moderna, mas também a antiga, a alquimia, as superstições e todas as teorias fracassadas anteriores, e conseguir daí extrair uma amálgama que sirva de base para uma lógica nova.

Senão, corre-se o risco de essa lógica se transformar numa paródia da química atual, baseada nos mesmos parâmetros, mas negando-os.

Andei pesquisando, e descobri que evidentemente já foram feitas algumas tentativas de obras científicas ficcionais. E das que encontrei até agora, mesmo a mais ambiciosa continua mal-sucedida. Se chama Codex Seraphinianus, um tratado naturalista sobre um mundo desconhecido. Escrito num alfabeto desconhecido, inclusive — bacana — com exceção do título — primeira grande falha.


O livro não vai muito além de plantas que andam e peixes com um olho na barriga. E ainda tem momentos grotescos, como o casal que ao copular se transforma num crocodilo (e que ganhou a capa!).

Acredito que o autor se esforçou, estudou pra burro, mas nunca conseguiria arranhar a inventividade de tudo que a ciência à vera catalogou em milhares de anos.

Por isso que passei a admirar Jorge Luís Borges. Acabei de reler o conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, em que ele usa um artifício genial para criar a sua própria enciclopédia de um planeta diverso. Sabendo que nunca iria conseguir igualar a riqueza de uma enciclopédia verdadeira, Borges escreve apenas um ensaio sobre a enciclopédia ficcional. De uma cajadada só, poupa o leitor do tédio e se desvencilha da árdua tarefa de pormenorizar toda a natureza e ciência de Tlön.

O único campo do conhecimento em que ele realmente se detém é a linguística — e aí ele deita o cabelo ao descrever como um idioma sem substantivos pode influenciar todas as outras esferas do pensamento. Nos outros, espalha umas poucas pílulas, que pela pequena quantidade, são genuinamente criativas, como ao descrever as escolas de pensamento tlönistas sobre o tempo. São cinco, vou citar três:

- “Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta que o presente é indefinido, o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade senão como recordação presente”;
- “Outra escola declara que todo o tempo já transcorreu e que nossa vida é apenas a recordação, ou reflexo crepuscular, sem dúvida falseado e mutilado, de um processo irrecuperável”;
- e minha favorita: “o universo é comparável a essas criptografias que não valem todos os símbolos e que só é verdade o que acontece a cada trezentas noites”.

E assim ele cria a percepção de um planeta com ciência e filosofia vastamente ricas sem precisar ir a fundo. Ou como diz no prólogo o próprio Borges: “Desvario trabalhoso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e propor um resumo, um comentário”.

8 Comments:

At 7:15 AM, outubro 09, 2008, Anonymous Anônimo said...

A volta dos posts constantes, bons e diversificados. Viva Paris!
 

At 9:52 AM, outubro 09, 2008, Blogger Rodrigo Rego said...

Que bom que pelo menos pra alguma coisa essa cidade tem prestado... =)
 

At 1:46 PM, outubro 09, 2008, Anonymous Anônimo said...

de certa forma eu admito que uma das razões que não curto tão ficção é que a realidade costuma ser ainda mais surpreendente, e as continuações são ainda mais legais. Esse Codex, por exemplo. Ele é claramente inspirado pelo manuscrito de Voynich, uma obra de 272 páginas escrito em 1500 e pouco sobre criaturas magníficas e inexistentes em uma língua desconhecida, com ilustrações magníficas.

A graça é que foi descoberto na europa mas ninguém sabe se foi obra de um autor dedicado que criou uma língua própria, se foi uma grande farsa ou se é uma cópia de um texto ainda mais antigo de uma tribo desconhecida.

Na busca pela resposta já foram feitas análises pelos maiores criptógrafos da realidade. Sabe-se que os caracteres não são postos aleatóriamente, mas que não segue a textura de nenhuma escrita européia.

Como diria quintana "Paciência. Não te direi o que seja...E é melhor assim. O mistério faz parte da beleza."
 

At 5:09 PM, outubro 09, 2008, Blogger Rodrigo Rego said...

Genial o tal manuscrito de Voynich, adorei a dica.

Segue o link: http://en.wikipedia.org/wiki/Voynich_manuscript
 

At 5:16 PM, outubro 09, 2008, Blogger Rodrigo Rego said...

Mas quanto ao seu argumento: já ouvi isso antes, e não concordo com essa história de não gostar de ficção porque a realidade é mais interessante. Afinal, o que te permite admirar a realidade dessa forma é o senso de maravilhamento típico com que reagimos à ficção. Se você é capaz de se maravilhar com a realidade, duvido que não consiga o mesmo com a ficção.

E o próprio manuscrito: não teria a menor graça se fosse inteligível e tratasse do mundo real. Ele só é interessante porque trata de um mundo (provavelmente) fictíceo numa linguagem (provavelmente) idem.
 

At 1:49 PM, outubro 13, 2008, Blogger Mauro said...

Eu vou com o Alexandre. Enquanto via amigos comentarem o Silmarillion eu lia "Asteca" (de Gary Jennings) e sentia um prazer imenso em ver que aqueles fragmentos de cultura estrangeira podiam ser verificados no mundo real até hoje.
Até a cultura inútil é reconhecidamente inútil mas tem seu valor apenas por ser verdadeira (ou, acredita-se ser verdadeira quando não é).
 

At 3:22 PM, outubro 13, 2008, Blogger Guilherme said...

Gostei muito da história desse manuscrito de Voynich.
 

At 10:12 PM, outubro 13, 2008, Blogger Rodrigo Rego said...

E no entanto "Asteca", pelo nome, é um romance histórico. Dvido que você lesse se não houvesse personagens fictícios. Se for assim, veja documentários, e não Hollywood.

E o manuscrito, realmente genial.
 

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Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

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