terça-feira, outubro 10, 2006

Bairro

Eu nunca o vi levantando da cadeira de balanço, ele, o ancião da família, e nem nunca tive coragem de perguntar se aquelas pernas magras e manchadas conseguiriam ainda sustentar o seu peso. Acho que nenhum dos descendentes jamais ousou indagá-lo a respeito, e por isso todos nós o chamamos de “ancião”, não pelo fato de ele nunca levantar da cadeira, mas porque ninguém tem certeza de que grau de parentesco tem com ele. Em qualquer reunião de família, o ancião está sempre presente, no mesmo lugar, na mesma cadeira, com sua velhice imutável, que sobrevive à deterioração da nossa juventude, integrando a decoração da sala como um móvel, mas um móvel ao qual se deve pedir a bênção, como fazemos eu, meu pai, minha avó, e as gerações anteriores fariam, se ainda estivessem vivas.

– Primeiro este prédio, depois a rua, depois o bairro, depois o mundo – era a frase que precedia a história que ele contava nos encontros familiares, sobre a inauguração do edifício Almeida Rego, o primeiro de Copacabana, na rua Dias da Rocha, e a posterior fertilidade da família, que fundada aquela base, se espalhou e multiplicou até perfazer a totalidade dos trezentos mil habitantes do bairro.

– É claro que eu estava fazendo troça quando disse aquilo – continuava – mas também não tinha idéia do poder de atração que esse lugar teria por mim. Nós os enfrentamos, crianças. Enfrentamos e vencemos. Montamos barricadas, fomos armados para as ruas, e não deixamos que invadissem o nosso bairro. Vocês sabem que Copacabana foi o único bairro que conseguiu resistir à vacinação forçada do Oswaldo Cruz? – e olhava para o tio Sérgio, que é pesquisador da fundação hoje. – Cada médico e cada soldado que tentava entrar, pou, tomava um tiro assim que botava o pé na Bulhões de Carvalho. Com a nossa família era assim. Nós nadamos dois quilômetros em mar aberto pra salvar a santa daquele cargueiro boliviano que naufragou, e é por isso que o nosso bairro tem esse nome hoje. Por causa da imagem da Nossa Senhora boliviana que nós recuperamos na nossa praia. E criamos o desenho do nosso calçadão, que ganhou fama mundial, e vejo alguns de vocês mais jovens dizendo que o desenho não é original, porque o teatro do Amazonas, mas que besteira! Se quiserem lhes mostro os esboços no meu caderno de contabilidade, e as fotografias da calçada em frente ao Almeida Rego, antes daquela bagunça do Rodrigues Alves.

Ainda criança, eu voltava dessas reuniões fascinado, sem acreditar que em nossa família pudesse haver tantas histórias de heroísmo, e que todo morador de Copacabana fosse um parente distante meu, descendente do ancião. Perguntava ao meu pai se era verdade mesmo o que ele contava, mas meu pai nunca respondia, só embaralhava o meu cabelo e dizia que já estava na hora de ir pra casa da minha mãe, o que não me dava muita segurança.

Quando se passa muito tempo sem pensar num assunto e ele volta de repente à cabeça, você percebe o absurdo que é achar que num espaço de cinco, seis gerações – que idade podia ter o ancião? – uma família gere trezentos mil descendentes, todos concentrados num só bairro, e impedindo a entrada de desconhecidos. Fiquei completamente descrente do ancião, e só depois, muitos anos mais tarde, percebi que podia haver um fundo de verdade nessa história.

Afinal, minha família paterna inteira mora em Copacabana, tirando o tio Sérgio, e eu entendo que ele se sinta mal nas reuniões. São primos, tios, avós, tios-avós, bisavós, todos residindo no mesmo bairro. Pode não ser uma prova, mas é um indício. Um indício do tempo em que o ancião caminhava na rua, a cada dois transeuntes, um era aparentado, o que o fez supor que os outros, anônimos, eram filhos e cônjuges recentes de seus familiares, aos quais ele não fora apresentado ou não se lembrava.

E só num bairro formado por uma mesma família poderia nascer uma sociedade de opostos extremos, como gêmeos idênticos que fazem o possível para se diferenciar, porque se não tiverem atitudes divergentes sua memória ficará sempre ligada ao irmão. Os membros da nossa família, em sua busca pela individualidade, formaram um bairro de prostitutas e aposentados, milionários e favelados, travestis e os cachorros de madame. Mesmo geograficamente, Copacabana se comporta como uma família brigona, dividida entre a praia e a montanha, a orla e a confusão do interior, e no meio dessa confusão, alguns dos cantos mais sossegados da cidade. E não falo só do bairro Peixoto não. Perto da Cardeal Arcoverde há ruas tranqüilíssimas, de paralelepípedo, que sobem a montanha como se estivessem perdidas na serra dos Órgãos. E tem uma rua secreta no final da República do Peru, uma fronteira da cidade com a mata Atlântica. Copacabana tem um morro também, bem no meio das principais avenidas, mas que ninguém vê, porque ele se deixou habilidosamente envolver pelos prédios, usando o próprio caos urbano para preservar seus passarinhos. Do topo desse morro que se vislumbra a grande família que Copacabana é. Todos os edifícios aqui, por mais diferentes que sejam suas fachadas, por mais bizarros que sejam seus moradores, têm a mesma altura. É uma coincidência sem precedentes, que não se vê em Botafogo, na Tijuca, nem em nenhum outro lugar. Qualquer bairro visto de cima é um mosaico acidentado de terraços a diferentes alturas, com ou sem telhado, com ou sem apartamento de cobertura, e estes, com ou sem piscina, com ou sem plantas, algumas secas, outras verdes, outras floridas. Têm piso de granito ou de cimento, ou tipo deque de madeira, ou são um estacionamento, se estiverem no alto de um shopping center, ou um heliporto, se for uma sede de multinacional.

Mas Copacabana, ao contrário, é toda igual. Os topos idênticos dos prédios são traços da mesma origem hereditária, que resiste às tentativas de diferenciação. Vista de cima, Copacabana vira uma planície monocromática, feita à imagem e semelhança do edifício Almeida Rego.

1 Comments:

At 7:40 PM, fevereiro 28, 2015, Anonymous Anônimo said...

Sensacional!
 

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Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
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Rio de Janeiro

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