terça-feira, agosto 01, 2006

Cultura da violencia

Quando fui pra Dinamarca ano passado, aproveitando a estada de um ano em Berlim, o Niels, velho amigo escandinavo que à época mereceu este post, disse que queria vir ao Brasil uma segunda vez, que tinha se amarrado no mês que passara aqui em 1997. Tipo de coisa que se diz pra agradar, apelando ao patriotismo e à memória comum, ainda mais quando não se tem muito assunto depois de oito anos de silêncio.

Só que não era conversa fiada. Ele veio mesmo, carregou a namorada, e estão desde quarta-feira aqui em casa, onde ficam até sábado, pra depois saírem em excursão pro Pantanal e Foz do Iguaçu. Eu nunca duvidei. Todo mundo sabe que dinamarquês não desperdiça saliva. Pra quem, como qualquer brasileiro, vive cercado de referências européias, é uma diferença previsível.

Mas pra eles a tarefa inversa é mais complicada. Sendo o nosso principal embaixador na Europa um chinelo de dedo, fica muito mais difícil, mesmo depois de vir pra cá, enxergar além da sambista pelada, do futebol-arte e da violência galopante. Essa última chega a agir de forma coerciva, forçando o visitante a não sair do ovo que a infraestrutura de uma cidade turística produz.

Por isso fiz o possível pra não contaminar o Niels e a Line com a nossa paranóia. Quero mais que peguem mesmo um ônibus pra ir pra Ipanema, sofrer um pouco de sacolejo e cacofonia. Que entrem numa feira, que comprem um refresco mais salgado um real, que não se limitem só ao Cristo e o Pão de Açúcar, que vejam a cidade funcionando entre essas ilhas estáticas. Claro que mostrei tudo que devia preocupá-los, os pivetes debaixo da marquise, o trânsito, as favelas, a polícia, e ensinei algumas precauções. Exige muito tato apontar os perigos potenciais, praticamente um por metro quadrado, sem envolvê-los numa fobia patológica. Passar dez dias circulando de táxi com ar-condicionado no Rio é transformar um investimento enorme em meia dúzia de cartões-postais. Num país com tanto a oferecer quanto o Brasil, não vale a pena.

Então estou me desdobrando pra rodar com eles por tudo que é canto, são dez dias que tenho pra fazê-los ligar os pontos e ver que país que se forma juntando todos os cacos que vão conhecer. Já comemos rabada numa travessa do Arco do Teles, mas também rodízio numa churrascaria cara, e bobó de camarão, e os pratos de arroz com feijão que se come todo dia aqui em casa. Já os fiz provar guaraná e cachaça, caipirinha de maracujá e suco de caju, mate e água de coco também. Fomos numa festa junina com show de forró, num boteco bunda-de-fora com um cara tocando violãozinho, no Claro Hall, na arte contemporânea do Paço Imperial e no artesanato da Feira de São Cristóvão. Estou ficando até meio obsessivo. Me pego lamentando as pequenas coisas que eles perdem por falta de referência ou defasagem no idioma, como a explicação dada pela Marisa Monte pra origem da música Meu Canário, que ajuda a entender a história do samba no Rio. Eu pescando tudo e eles, aquela cara de bunda.

São fundamentais essas sutilezas coloquiais. A própria formulação das frases ajuda a entender o caráter do povo. Não deve haver nenhuma outra língua com tanta descontinuidade, esses anacolutos que se bota no meio da sentença e a levam pra qualquer canto, imprevisível, sem nenhum planejamento. Sábado de noite, depois do assalto em Santa Teresa, eles ficaram com medo de sair de noite e acabamos vendo o documentário Vinícius, do Miguel Faria Jr.. Vinícius de Moraes e Chico Buarque só falam assim, e não há legenda que dê conta de um idioma tão soluçado. Com tanta emenda que os tradutores fazem pra dar estrutura à frase, acaba-se perdendo o significado, e as palavras de dois dos maiores gênios brasileiros ficam vazias.

Ah, é. Tem isso. Fomos assaltados. Um cara botou uma garrafa quebrada no pescoço do Niels e tomou-lhe a mochila.

De repente qualquer retórica sobre violência corre pro ralo. Toda a riqueza cultural perde a relevância. O exotismo vira ameaça. É triste, triste vê-los saindo do táxi e correr apavorados, olhando pra todos os cantos, em direção ao próximo porto seguro.

Paíszinho de merda.

8 Comments:

At 6:38 PM, agosto 01, 2006, Anonymous Anônimo said...

Que merda, Rodrigo!
Quando vc disse que tinha "acontecido" em Santa, imaginei que fosse assalto. Sempre que levo algum turista em Santa vou com todos os alertas ligados. Mas também nunca levei gringo pra lá, só brasileiro. Deve ser bem triste mesmo ver que tudo de bonito vai pro ralo, mesmo com tanto esforço, por causa de uma experiência ruim. É compreensível, e triste.
Espero que eles estejam curtindo a viagem apesar do percalço.
E quanto à sua obsessão, te entendo completamente. Eu, sempre que recebo um visitante, fico tentando fazer com que a pessoa entenda tudo o que eu já conheço e amo dessa terra, o que é impossível - e sinto a mesma frustração que você.
Agora, "anacolutos" é sacanagem! :P
Bjo.
 

At 11:26 PM, agosto 02, 2006, Blogger Rodrigo Rego said...

Rio de Janeiro? Brasil? Mundo? Acho que tirando a Dinamarca, o resto está um anacoluto só.
 

At 11:46 PM, agosto 03, 2006, Anonymous Anônimo said...

pra mim seria impossível nao envolver ninguém nessa fobia patológica, uma vez que eu sou tomada por ela. muita gente me critica por falar isso, mas eu nao aconselharia nenhum amigo gringo a vir pra cá. vc vem pra se divertir e acaba se estressando, e no final tudo de legal que a pessoa viu aqui vai pro ralo, como vc bem disse.
é uma peninha uma cidade tao bonita como a nossa jogada às traças assim...
bjs
 

At 7:55 AM, agosto 04, 2006, Anonymous Anônimo said...

ah gente... menos, vai...

assalto tem em todas as cidades grandes. Eu vi dois assaltos em paris e nem por isso eu vou parar de ir lá. Uma mulher levou uma tijolada na cabeça de um mendigo na minha calçada em nova iorque, e nem por isso deixou de valer a pena cada momento que eu passei na cidade.

E, digo mais, já fui assaltada um zilhão de vezes no Rio, e mesmo assim adoro essa cidade.

Quem vem da Dinamarca, não está acostumado com metrópoles, vai ficar assustado mesmo. Nenhuma cidade com 7 milhões de pessoas, como o Rio, é igual àquelas capitais européias, onde 500.000 pessoas já é considerado cidade grande.

Aqui tem o risco de ser assaltado sim, como em londres, amsterdam, toquio, pequim, etc. Vão ficar enfurnados em Stockholm ou Reijkavyk pra não passar por riscos? Fala sério... Ser assaltado é uma merda, concordo, mas faz parte das metrópoles. Todas elas.

O gringo tem mais é que vir mesmo e viver um pouco fora do casulo de segurança e previsibilidade de onde eles saíram.

bjs
 

At 8:53 AM, agosto 04, 2006, Anonymous Anônimo said...

Assalto tem em todas as cidades, s� que na nossa cidade tem mao armada, caco de vidro no pesco�o, soco na cara e etc. L� fora assaltam sem voce se dar conta ,e ,voce nao sofer nada na maioria das vezes...aqui voce fica traumatizado tendo muitas vezes tem que ir pro hospital, como um amiga minha que quebrou o pulso por causa de um celular somente...o pivete jogou ela longe...
 

At 12:00 PM, agosto 04, 2006, Blogger Rodrigo Rego said...

Bárbara, estou longe de ter a sua opinião, acho inclusive que pensar assim é uma forma de empurrar o problema pra baixo do tapete. Mas assim mesmo, Paula, jamais faria como você. Eu sempre, sempre, encorajei todo mundo que conheci no exterior a vir pro Rio. Sempre destaquei o lado bom e relevei o ruim.

Acho que gosto mais da minha cidade que dos meus amigos. =)
 

At 3:39 AM, agosto 06, 2006, Blogger Mauro said...

Po, assalto faz parte do programa. Você foi ao Rio e não foi assaltado? É como "Você foi a Amsterdam e não foi ver as putas na vitrine?". É uma visita incompleta, como foi a minha visita a Amsterdam :P

Só o fato das pessoas argumentarem que assalto acontece em qualquer cidade já prova algo sobre o Rio. Estamos bem mal, mas ainda não chegamos ao fundo do poço...
 

At 2:32 AM, março 16, 2007, Anonymous Anônimo said...

Essa noite (15/03/07) fui assaltado a mão armada na descida de Santa Teresa - R.Cândido Mendes. O local é, segundo os próprios policiais da delegacia da área, carente de policiamento e mal iluminado. Segundo eles, a incidência de roubos ali é grande. Que pena, Rio. Eu, que sou tão carioca ... em 2006 tive a casa arrombada em Copacabana e em 2007 sou assaltado! Putz. Não dá pra acreditar e nem pra dizer mais nada. Achei esse blog buscando notícias de assaltos em Santa Teresa - tem vários registros. Fica a fé de que um dia melhore.
 

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Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

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