terça-feira, agosto 22, 2006

Quarto

Tenho algo terrível a confessar sobre meu quarto. Pouco antes de nos mudarmos para esse apartamento, há quase nove anos, eu e minha mãe fomos numa loja de arquitetura, das melhores de Copacabana, e encomendamos o projeto dos móveis. Voltamos um mês depois, quando a arquiteta nos apresentou a proposta. Era um projeto muito bem feito, e apesar de eu chegar à conclusão alguns anos mais tarde de que não gostava da escrivaninha, ainda me sinto muito à vontade com a minha cama extra-comprida e minha estante de relíquias. A estante de relíquias é uma parte muito peculiar do meu quarto, formada por três prateleiras de canto arredondado que se projetam quase um metro e meio pra fora da parede, dividindo a cama da escrivaninha. Nela exponho alguns objetos acumulados ao longo da vida, como minha coleção de bandeiras, a vasta gama de puzzles e joguinhos manuais, e curiosidades como uma mandíbula de tubarão, garrafas de vodcas tcheca e letã, e garfos lutando caratê.

A arquiteta que desenhou a estante, e todo o resto do quarto, era uma moça muito bonita. Era loira, não tingida, e tinha uma cara magra e um nariz longo e pontudo. Foi bem educada também. Não reparou que eu tinha vindo à loja vestindo um moletom verde surrado que cabia melhor na gaveta de pijama, e trazido um bloco de notas com uma caneta bic presa na espiral. Sentamos eu e minha mãe em torno da mesa de vidro. A arquiteta abriu o projeto e começou a explicar. Ela foi muito simpática, mas logo se via que por baixo de muitas camadas de sorriso, não gostava do lugar em que trabalhava, nem de nós. E gostava menos ainda do projeto que fizera, culpada pelo pouco trabalho intelectual que dispensara para agradar a pessoas médias, como nós, que não tinham o gosto apurado que ela lapidou durante a formação. Durante a faculdade, tinha feito projetos fantásticos, prédios públicos, um museu de arte contemporânea que lembrava Santiago Calatrava. E agora, depois de formada, estava projetando quartos convencionais para a classe média em que ficava proibida de mostrar seu inconformismo. Podendo trabalhar com fibra de vidro e bambu, ela não ousava além de madeira e fórmica, e sabia que seria mais do que suficiente para iluminar as cabeças turvas de gente como nós, como qualquer cliente da loja. Depois pensava no elitismo intelectual dessas idéias, mas o próprio pensamento já a jogava de novo no egocentrismo.

Era uma espiral crescente, que ela camuflava bem com um sorriso. Mas ficava difícil explicar a proposta e domar a decepção ao mesmo tempo, e praticamente impossível notar que, por baixo da mesa, eu e minha mãe copiávamos o projeto com todas as medidas, de frente, de perfil, raios, alturas, espessuras, tudo. Uma semana depois, demos a um marceneiro que fez os móveis por menos da metade do preço.

4 Comments:

At 12:26 AM, agosto 23, 2006, Anonymous Anônimo said...

hahahaha...
Assim voc^contribuiu pra que a arquiteta de mente inquieta fosse fazer outra coisa! :P
Bjo.
 

At 10:12 PM, agosto 23, 2006, Anonymous Anônimo said...

de repente a moça sabe que as pessoas só vão à loja pra copiar seus projetos e mandar outro marceneiro fazer... por isso ela é tão frustrada :P

e essa coisa de estante de reliquias é mesmo um ótimo pretexto pra nao jogar fora as porcarias que a gente ganha ao longo da vida e se afeiçoa. eu tenho uma aqui no quarto tb, muito hype.
bjs!!
 

At 10:16 AM, agosto 25, 2006, Blogger Rodrigo Rego said...

Pode até ser hype, mas duvido que tenha garfos lutando caratê! bj!
 

At 4:16 PM, setembro 24, 2006, Anonymous Anônimo said...

Pirata filho da 9#+&! Plagiou meu trabalho! Eu sabia que que vc ia copiar meus móveis, fedelho insolente!
 

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Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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