quinta-feira, março 05, 2009

A História é um romance

Um dia eu disse que o melhor da História são os grandes marcos: tomada de Constantinopla, assassinato de César. Na época eu tentava me contrapor aos chatos que querem evitar a decoreba de datas e nomes nas aulas de História. Datas e nomes são a alma da História.

Acaba que as crianças ficam reféns dos porquês (não sabe, chuta crise agrária, a gente dizia), e é por isso que no colégio eu me via na situação bizarra de adorar História, a musa, mas não gostar de História, a disciplina. Cheia de porquês vomitados. Crise agrária. Colapso do sistema feudal. Blergh.

Mas lendo os Atlas da História Mundial, descobri que mais fascinantes que os grandes marcos, e obviamente muito mais interessante do que os porquês que explicam o dia-a-dia, é estudar as pontes entre os momentos históricos.

Ponte, na música, é a estrofe que liga o final ao início da canção. Em Hard Day’s Night, por exemplo, são os versos que reintroduzem o refrão sem quebrar a melodia:

When I’m home / everything seems to be right / When I’m home / feeling you holding me tight!

Em História, a gente só estuda os refrãos. Momentos estanque, coerentes no seu todo, mas é raro entender como a coisa flui para o momento seguinte.

Por exemplo, vamos lá pro início, quando os homens caçavam com pedra polida e faziam pintura de dedo em Lascaux. Como eram engenhosos esses primitivos, já sabiam até esfregar dois pedaços de pau pra fazer fogo. Aí perdemos o bonde e só voltamos a alcançá-lo no próximo capítulo, quando já estão erguendo pirâmides e zigurates no Oriente Médio. Peraí, o que aconteceu nesse meio?

Agora eu sei. Obedece uma lógica impecável que passa pela invenção da agricultura, sedentarização, poder central para controlar a população crescente, formando cidades-estado e expansão da influência dessas cidades-estado, formando impérios.

A Suméria não era uma civilização coesa, mas um amontoado de cidades-estado independentes de mesma língua que se matavam atrás de mais territórios. Às vezes uma delas — a Babilônia, por exemplo — crescia além da conta e fundava um império.

Fácil e lógico, não é? Vamos ver se os produtores de Lost vão resolver os mistérios com essa elegância toda.

Outro exemplo, agora mais específico. A Rússia. Você nunca ouviu falar dela até o Congresso de Viena, quando de repente, descobrimos uma jamanta poderosa e maior do que o resto da Europa inteiro. Como se formou esse império? Sabe como? Colonização viking! Não é o bicho?

Os vikings desceram os rios que desembocavam no mar Báltico e fundaram um estado com capital em Kiev, onde antes só havia povos nômades. Plantaram a semente da Rússia atual.

“Eu gosto de História porque pra mim ela é um grande romance”, é uma frase que podia ter sido dita por um filósofo, mas quem diz é meu pai. E eu concordo com ele. A História humana dava um puta livro: antes, meu maior interesse era o beijo do herói na mocinha. Mas o périplo para chegar na masmorra do castelo é que é a alma do romance.

E claro, sempre tem o chato que quer saber por quê os dois se amam, se é uma imposição social ou uma reação química causada pela compatibilidade de cheiros. Crise agrária, pode chutar.

11 Comments:

At 8:07 PM, março 05, 2009, Anonymous Anônimo said...

História realmente é um grande romance. E não teria como ser diferente já que os protagonistas são seres humanos e esses são completamente passionais. ;)

Essa coisa das transições são engraçadas mesmo. Eu tive na faculdade uma professora substituta que era apaixonada por isso, sempre explicava o que levava um episódio ao outro, sempre explicava o contexto "cultural e social" do período - pq geralmente os professores ficam presos no sócio-econômico. Foi assim que eu entendi a mudança da idade moderna pra contemporânea. E a sensação que eu tenho é que o que falta aprender não vai acabar nunca.

Outra coisa que essa coisa de história-romance me lembrou: Guerra e Paz. Eu sei que vc leu o livro. Eu só vi o filme. No fim é tudo assim: por trás de um contexto amplo tem sempre um romance, uma família, pessoas. É por isso que é tão divertido.

Bjo.
 

At 11:40 PM, março 05, 2009, Blogger Alexandre Van de Sande said...

Eu concordo que as partes mais fascinanates do que aprendi em historia recentemente eram os links que ninguem falava. Não o "crise agrária" -> "revolução não sei o que", mas as ligações entre eventos separados, por continentes mostrando como a historia é toda unida.. Por exemplo meus favoritos:

O logo da vodka kovak é um urubu com duas cabeças. É isso porque eles quiseram se associar aos russos, mas não aos sovietes então pegaram um simbolo dos Czares. Os czares usavam esse simbolo porque no incio da era dourada dos czares coincidiu com o fim do imperio bizantino, literalmente com a ultima rainha bizantina casando com um czar. Os bizantinos tinham esse simbolo porque foram por mil anos o imperio romano esquecido do oriente, que se partiu em dois e a águia era um simbolo romano.

Daí você quer ir pra onde? Podemos chegar na tunísia, e se linkar com lost, porque o momento que roma virou um imperio mesmo e dominou o mediterraneo foi quando destrui carthago, seu maior adversario na africa.

Ou podemos dizer que os imperadores bizantinos ao cairem fecharam as rotas que forçaram os portugueses ao mar.

Outro: você viu/leu caçadores de pipas? Lembra o garotinho que é atacado por ser hazara? Os hazaras são na verdade os descendentes de genghis khan no afeganistao. Gengis khan que aliás ferilizou 90% da ásia central. E as disputas étnicas contra os hazara estão numa parte central do que levou o talibã ao poder. Esse mesmo talibã que o obama vai enfrentar no paquistão.

Paquistão, o da índia que...

enfim, ligações secretas é o verdadeiro suco, foda-se quem a princesa beija
 

At 11:14 AM, março 06, 2009, Blogger Rodrigo Rego said...

Engraçado, eu já me lembro muito mal de Guerra e Paz... Pelo visto não foi um livro muito marcante. Mas agora que você falou, estou relembrando do contexto histórico da invasão da Rússia, até Napoleão era um personagem, não era?

Alexandre, você foi bem mais fundo do que eu! Estou por enquanto só buscando as ligações entre os momentos estanque clássicos, tipo olhar pro mapa da Europa em 1914 e ver aquele bando de republiquetas entre o Império Austro-Húngaro e o Otomano, e voltar um século antes e ver que era tudo um grande império Polônia-Lituânia desaparecido. Mas desapareceu como?

Você já entrou na cultura inútil dos links históricos... acho que esse é meu próximo passo.
 

At 1:56 PM, março 06, 2009, Blogger Mauro said...

Este comentário foi removido pelo autor.
 

At 9:55 PM, março 10, 2009, Blogger Guilherme said...

Napoleão era um personagem, mas no capítulo final há uma discussão "Por que Napoleão invadiu a Rússia?", e a resposta dada é que Napoleão invadiu a Rússia porque Napoleão invadiu a Rússia. Isso não cheira muito apreço pela História.

Falando em Tolstói e falando em pontes históricas, um fato inútil e curiosíssimo: Tolstói trocou correspondências com Mahatma Gandhi.
 

At 11:05 AM, março 11, 2009, Blogger Rodrigo Rego said...

ELe não invadiu a Russia porque a Rússia se recusou a colaborar com o bloqueio econômico à Inglaterra?

Tolstoi e Gandhi? Não tem uma diferença de idade entre eles? Só consigo imaginar um velho encarquilhado barbudo trocando cartas com uma criancinha careca de toga...
 

At 12:41 PM, março 11, 2009, Anonymous Anônimo said...

O escândalo midiático da descoberta de que Tolstoi vinha molestando meninos oriundos de culturas submissas a doutrinas de não reação levou a uma crescente rejeição da Igreja Ortodoxa Russa e do Czarismo. Gandhi foi um dos estopins da Revolução Russa.
 

At 4:35 PM, março 11, 2009, Blogger Guilherme said...

Tolstoy: 1828–1910
Gandhi: 1869–1948

http://en.wikipedia.org/wiki/A_Letter_to_a_Hindu
 

At 6:14 PM, março 11, 2009, Blogger Rodrigo Rego said...

Sensacional isso. Quer dizer que Tolstoi e sua religião esquisita (ele tinha quase que uma seita independente, não era?) foram os pilares da independência da índia. Quem diria!
 

At 10:09 AM, março 27, 2009, Anonymous Anônimo said...

Nossa! Quantos comentários interessantes! Vcs não querem continuar com esse papo-cultura-inútil não? ;)

Bjo.
 

At 10:11 AM, março 27, 2009, Anonymous Anônimo said...

Ah, quanto ao "Guerra e Paz", no filme eles dão mais atenção ao romance do que ao contexto histórico, então, pelo que me lembro, Napoleão não aparece (fisicamente).

Bjo.
 

Postar um comentário

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

Melhores Posts
Posts Recentes

Powered by Blogger

Creative Commons License