sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Universo

Numa outra sala de aula, a uma distância muitas vezes maior das escolas da Terra do que era a Escola Marcial de Ursa Maior, numa civilização infinitamente mais antiga e inimaginavelmente mais avançada, bilhões de anos no futuro, pouco depois de as estrelas e planetas voltarem a se concentrar num único átomo quentíssimo e ultradenso, quando o tempo mais uma vez parou de fazer sentido. Uma outra professora de primeira série fecha a tampa do nosso universo e escreve em cima o número três, sublinhado com dois traços.

– Três? Mas tia, meu universo funcionou direitinho! Passei bem além do tempo mínimo exigido, não precisei intervir em nada, não ameaçou desintegrar, deu tudo certo!

– Eu sei, mocinha. Por isso mesmo não estou te dando uma nota mais baixa.

– Mas o que eu fiz de errado?

– Você não fez nada de errado do ponto de vista técnico, querida. Suas equações, as leis físicas que você estipulou, as ligações químicas, está tudo correto, entre os melhores da turma. Estou te dando uma nota baixa por algumas questões éticas que você não levou em conta. Sente aqui, que eu quero conversar com você.

A menina se acomodou numa cadeira ao lado da professora, os olhos arregalados.

– Andei notando que você é uma menina bem avançada pra sua idade. Vejo você no pátio sempre junto de alunos mais velhos, imitando-os. Dentro de sala, está sempre tentando transgredindo os limites do que é aconselhável à primeira série da escola.

Continuou:

– Você construiu um universo habitado, mocinha. E como se isso já não fosse um passo suficientemente além das fronteiras da primeira série, o seu universo é habitado por vida inteligente.

– Mas todas as espécies eram sadias!

– Eu sei, querida. Você inventou um sistema muito versátil de variação de espécies. Mas já que quis dar um passo adiante, vou julgar o seu trabalho com o rigor que julgaria um trabalho de quarta série. E aí criar ecossistemas sustentáveis é apenas uma exigência básica. O seu universo tinha uma porcentagem muito baixa de áreas com condições propícias à vida, tanto que num espaço de 15 octilhões de anos-luz cúbicos, o que é bem grandinho até para um trabalho de quarta série, só oito dos milhões de ecossistemas esféricos, que você chamou aqui no seu relatório de “planetas”, desenvolveram vida inteligente.

– Mas planetas com vida não-inteligente, têm muitos mais.

– Só que uma vez que você se propôs a cultivar vida inteligente, oito ecossitemas é muito pouco. Tanto que só houve um encontro de civilizações de “planetas” diferentes, se é que se pode chamar essa interação peculiar entre os seres do planeta Terra e os de Ursa Maior de encontro.

– Não tenho culpa se Ursa Maior resolveu explodir a Terra, tia, isso foge ao meu controle.

– Nem tanto, porque a estrutura atômica que você usou para criar vida é sabidamente frágil, e pode desregular a formação do caráter dos seres vivos, tanto que todas as espécies inteligentes falharam em conseguir harmonia interna.

– Eu sei…

– Mas se fosse só isso, querida, você estaria aprovada com louvor. Eu queria falar, e você me desviou do assunto, das questões éticas do seu trabalho. A primeira é que todos os seres do seu universo são mortais. A escola proíbe esse tipo de experimento, e não é por dificuldade de execução. Seres vivos mortais só são criados em laboratórios habilitados, afinal, você está lidando com muitas vidas. No seu relatório, você diz que durante o tempo de funcionamento do seu projeto, surgiram quase 100 quatrilhões de organismos vivos. Pois bem, até a extinção do seu universo você matou os mesmos 100 quatrilhões de organismos, o que te coloca como uma das maiores genocidas da história, já pensou nisso?

A menina segurava as lágrimas.

– E não é só isso. Você implementou em nos seres inteligentes um comportamento chamado de “religião” que faz com que todas as oito civilizações inteligentes tivessem, em algum momento, usado a alcunha de “deus” para se referir a você, criadora do universo. Eu sei que foi só de brincadeira, mas você acabou dando mais um motivo de conflito entre os seres instáveis que povoaram o seu trabalho. Essas criaturas podem ser insignificantes pra você, querida, mas elas têm arbítrio próprio e manipulá-las sem autorização é falta grave.

O rosto vermelho inchado da menina já não escondia seu desapontamento:

– Eu vou ficar de recuperação?

– Não acho que um mês a mais vá resolver essa questão, querida.

– Mas e se eu fizer outro universo, mas sem deixar as pessoas morrerem, a senhora me passa de ano?

De repente um apito agudo furioso, e as paredes da escola começam a desmoronar. A professora e sua aluna são sugadas junto com móveis e outros estudantes para algum ponto infinito no espaço, e do alto, alguém exclama, em desespero:

– Maria, meu trabalho! Eu disse pra não limpar aí!

domingo, fevereiro 04, 2007

Galaxia

1. Descreva usando argumentos próprios uma estratégia eficiente de invasão do planeta Terra.

Foi a pergunta única da prova final da escola marcial de Ursa Maior para os alunos da primeira série primária. Na manhã seguinte, estavam todos ansiosos para saber o resultado, ainda mal acostumados com o nível de disciplina da nova escola. A professora trouxe o envelope pardo debaixo do tentáculo, deixou-o cair sobre a mesa e tirou o maço de folhas de dentro todo de uma vez.

– Vocês foram mal. Esta é a turma mais displicente que já tive.

Depois pegou a última prova do bolo e disse:

– Aluno número 428, entre todas as respostas absurdas que li, a sua foi a pior.

– Mas mestra, eu não posso, estou com…

– Claro que pode. O senhor teve a coragem de escrever aqui que a melhor forma de invadir o planeta Terra é “explodindo com uma bomba”, mostrando que sequer passou o olho sobre o capítulo de estratégias militares. Se tivesse estudado, saberia que desintegrar um planeta, além de não contribuir em nada para os planos de expansão da nossa Pátria, espalha destroços pelo espaço que podem avariar nosso transporte público.

– Só que ontem o meu pai…

– E o que acontece, turma, com “alunos que acham que a escola é moleza, / têm só nota baixa e são ignorantes?”

E a classe, em coro:

– “Hão de ser presos de ponta-cabeça / servindo de exemplo pra mais estudantes.”

– 428, você vai ficar cinco dias acorrentado de cabeça pra baixo na masmorra.

E ele, chorando, vem à frente estendendo um papel dobrado e balbucia:

– Mas ontem meu pai desligou a televisão justo quando eu estava na frente do controle remoto, e o raio me fez um buraco na testa, olha aqui o curativo, e se eu ficar de cabeça pra baixo muito tempo o sangue vai escorrer todo pra fora e eu vou morrer.

– Eu disse pra que quando acontecesse essas coisas vocês trouxessem um atestado médico.

– Mas esse é o recado do meu pai com a assinatura dele, olha, e eu tou com um curativo na cabeça.

– Deixe-me ver aqui…

A professora puxou as bandagens com sua ventosa, conferindo o buraco.

– Pro seu lugar. Vou escolher a segunda pior resposta.

E folheia as provas aleatoriamente. Tira uma e lê o cabeçalho:

– Aluno C37.

-Ele levanta tremendo da cadeira.

– Vou ler pra turma o que você escreveu na sua prova. “A melhor estratégia para invadir o planeta Terra é mandar um disco voador com dois soldados batedores, obrigando um terráqueo a levá-los a seu líder e depois exterminá-lo.”

– Mas eu fiz uma pesquisa que dizia que era assim que se fazia.

– E o senhor acha razoável aterrisar no planeta Terra sem sequer saber quem é o governante?

– Eu sei, mas na pesquisa eu assisti a um filme, e li um livro que dizia que era assim que os invasores dominavam a Terra!

– E o senhor não vai me dizer que a sua fonte de pesquisa foi produzida na própria Terra, foi?

– Não sei…

– Para mim está evidente que você pesquisou material feito em território inimigo, e o senhor já está na idade de saber reconhecer uma fraude de um artigo idôneo. Já pra fora de sala, que o bedel vai acompanhá-lo até a masmorra.

O aluno C37 arruma a mochila e sai, frustrado.

– Eu poderia mandar pelo menos metade de vocês fazer companhia ao seu colega. Tem um rapazola aqui… onde está o aluno H62?

– Aqui, mestra – responde ele, intimidado.

– O senhor assistiu a aula de ontem, 62?

– Ontem, sim.

– Não assistiu não. Porque se tivesse assistido, saberia que em nenhuma hipótese se usa ataque bacteriológico num planeta como a Terra. “Quando à invasão se seguir permanência / …”

E a turma:

– “… / Não podeis jamais espalhar a doença.”

– E você sabe que há anos o planeta Terra deixou de ser um entreposto de abastecimento e que a Pátria tem planos de explorar seus recursos hídricos.

O aluno H62 baixou a cabeça e ficou calado.

– Tenho uma pergunta a fazer também para o aluno 774.

Ele se levantou.

– 774, deixei sua prova para análise do corpo de mestres. O conteúdo que a sua resposta apresentou não é esperada de um aluno iniciante.

– Obrigado, mestra.

– Não estou elogiando. O conselho está deliberando sobre a sua prova. O aluno 774, caros estudantes, escreveu que é preferível que a Pátria invada Marte, um planeta vizinho despovoado que também tem recursos hídricos em abundância, e ainda congelados, o que facilita o transporte. E que ao estabelecer uma base próxima à Terra, poderia ser inaugurada com os terráqueos uma relação comercial pacífica, mais lucrativa para a Pátria do que a guerra e a conseqüente extinção dos humanos.

– Foi porque…

– O que está escrito está escrito. Sua prova está sob análise. Se o corpo docente concluir que sua solução é adequada, você receberá das mãos do diretor a nossa medalha de honra máxima. Do contrário será enforcado.

– Meu favorito.

– O que disse?

– Ele disse que ser enforcado era a punição favorita dele, mestra!

– Não lhe dirigi a palavra, senhorita! Os dois, já para o calabouço inferior, duas semanas sem comida!

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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