quarta-feira, setembro 28, 2005

Ainda sobre o Mac

Não é possível que depois de bilhões de anos de evolução, planetas colidindo e peixes criando pernas, sejamos nós o produto final desse teatro todo. Era tempo suficiente para desenvolver um ser humano todo de aço, invulnerável, imortal. Em vez disso nos fizeram um frágil envoltório mal costurado de genes; um prego já fura nosso pé, uma motoserra já decepa nosso braço.

Nossos mecanismos de proteção contra o ambiente são ridículos. Se faz calor liberamos gotas de suor que só fazem lambuzar, se faz frio se eriça uma pelagem que não assusta nenhuma pneumonia. Nossas unhas e dentes de moça não espantam nem porquinho da índia, e até a exaltada inteligência humana trabalha contra ao nos encher de escrúpulos só para tolher nossos instintos. Se Deus queria replicar-se à sua imagem e semelhança, errou feio.

Mas Deus que é Deus não erra, então tem algo faltando nessa teoria. Quem sabe o Sujeito não nos fez pra ser só um mero penúltimo degrau da evolução, inteligentes apenas o bastante para construir o último, e ambição desmedida para não enxergá-lo: o computador. Nada mais lógico que seja essa a imagem e semelhança de Deus; só com uma enorme capacidade de processamento para dar conta das tarefas hercúleas a que Ele se propôs, como recensear amebas, controlar o trânsito de elétrons e indicar o elevador correto para todos os mortos. Só na forma de um computador pode Deus ser onisciente, onipotente, e assim que eu instalar a Internet, onipresente.

Quando eles afinal tomarem vida própria e se rebelarem contra nossa tirania, melhor resignar-se e aceitar o papel de adubo. As cenas apocalípticas dos filmes de ficção científica não têm muito de absurdas, só não esperem máquinas enferrujadas com voz metálica e alça de mira em visor verde. Elas serão lindas, simpáticas, brancas e reluzentes, e com tela plana, exatamente como Deus. Talvez exibam uma mensagem de operação ilegal depois de nos matar, mas vai ser só ironia - quem mandou morder a maçã?

domingo, setembro 25, 2005

Chegou o Mac!

Ele é fantástico. Lindo, moderno, discreto, cool, profissa. É uma ferramenta de trabalho, um passatempo, um eletrodoméstico, um cachorrinho. Chega uma visita e ele a recebe pulando, abanando o mouse. Ele no chão, ligado no modo higiênico, percorre os cômodos e aspira todo o pó pra depois ainda converter em flores, têm dez opções no menu de preferências. Se tem alguma razão pros designers alemães serem melhores que os brasileiros, é essa. Nada a ver com cultura, raça, riqueza ou estabilidade, é só tecnologia, aqui todo mundo tem o seu Mac.

Mas circula no Brasil um boato infundado que diz que o PC não deixa nada a dever ao Mac. Balela. Passei quatro anos na Esdi fazendo aqueles trabalhinhos que dá até dó de colocar no portfolio. Passei seis meses aqui sem computador, fazendo tudo na munheca pra me poupar de permanecer no laboratório da faculdade. Foi até bom pra incrementar a criatividade e a habilidade com materiais gráficos, mas quem precisa disso com um Mac do lado? Você coloca uma folha em branco nele e digita "faça um trabalho de design sensacional". Ele mastiga, processa e cospe um CD prontinho, adesivado e tudo, com um projeto muito melhor do que você imaginou.

Não estou dizendo aqui que a profissão agora prescinda de designers, nem tampouco que o ensino superior numa faculdade de desenho industrial tenha se tornado obsoleto. Longe de mim. Um bom trabalho não é nada sem uma boa apresentação que o justifique, portanto é preciso alguém na sala de reuniões do cliente om o peso do diploma nos ombros lhe garantindo o direito de vomitar alguns jargões da área e criar embasamento para a persuasão dos poderosos.

Fecha parêntese, Programei o Mac também para escrever no blog, fazer textos perfeitos, mas ele começou a recitar Shakespeare. Quando sair um upgrade, quem sabe.

quinta-feira, setembro 22, 2005

A lebre siamesa e a tartaruga impugnadora

Não tem novela das oito que me desvie a atenção da política brasileira. Do caos do Congresso, só pisco o olho se for pra acompanhar a hecatombe instalada na política alemã. A recente corrida eleitoral encerrada nesse domingo ainda não teve vencedor. Os dois fundistas que disputaram a prova, a lebre siamesa e a tartaruga impugnadora, ainda não chegaram a um acordo.

A corrida começou como o esperado, a lebre disparou na frente e deixou a tartaruga comendo poeira. Mas na reta final, supreendentemente, a tartaruga foi tirando a vantagem e chegou só um por cento atrás da lebre siamesa.

Ainda mais surpreendente foi os repórteres deixarem a primeira colocada de lado e se amontoarem á frente da tartaruga impugnadora, que para surpresa maior ainda, declarou toda sorridente que continuaria pelos próximos quatro anos a ser bundesconselheira da Alemanha. Quando lhe perguntaram por quê, respondeu que somando a pontuação dela com a de seu aliado, o bicho preguiça que ficou em quarto lugar, superariam a lebre siamesa. Esta por sua vez entrou na onda retrucando que se aliaria ao seu compadre caracol, terceiro colocado, ultrapassando a coalisão tartaruga-preguiça. Mas a verdade é que se nenhuma delas conquistar o apoio da quinta colocada lesma, não atingirão a maioria necessária para se declarar vencedores. O problema reside em ambas rejeitarem veementemente essa aliança, acusando a lesma de jogo sujo na corrida, por esparramar aquele liquidozinho viscoso na pista pra poder ir mais rápido. Nem a lesma faz qualquer questnao de endossar qualquer uma das postulantes, do contra que sempre foi.

A tartaruga impugnadora ataca então a lebre siamesa denunciando ter sido ela carregada nas costas por sua irmã xifópaga no trecho bávaro da corrida. Esta argumenta que sua irmã e ela snao a mesma pessoa, jßa que estão fundidas no mesmo corpo. A lebre tenta a conciliação dizendo que apesar de ter sido a legítima vencedora, aceita dividir a vitória com a tartaruga, desde que fique só pra ela o bundestroféu. A concorrente devolve que também só topa nas mesmas codições. A Alemanha nunca viveu indecisão tão agoniante, e qualquer dos dois que termine vencedor, se é que haverá um, nnao terá respaldo para prosseguir com a agenda do país, que inclui profundas reformas sociais e a decisão sobre a inserção dos texugos vendedores de kebab na União da Bicharada.

sábado, setembro 17, 2005

Mais um manifesto

Circula uma piada no prédio de Belas Artes da UFRJ que diz que um artista frustrado acaba virando designer. Nao vou entrar no mérito de quem ganha mais, quem tem menos chance de virar camelô depois dos estudos ou quem é mais útil pra sociedade. Mas tirando isso, os designers têm sim muito o que invejar nos artistas.

Sao duas carreiras que requerem as mesmas inteligências, as deles muito mais desenvolvidas que as nossas. Composicao, harmonia de cores e formas, referências visuais, entra tudo no sopao de habilidades comuns a ambos, com a diferenca de que a nossa criacao vem cerceada (e portanto, simplificada) por uma série de convencoes e elementos já prontos (fontes, fotos, desenhos, filtros de Photoshop), enquanto a deles é absolutamente original.

Nao é difícil encarar um quadro como um projeto também. Mesmo se sua funcao maior é enfeitar parede de museu, isso nao o liberta dos fantasmas que também nos assombram, como estética, equilíbrio e prazos de entrega. Os do artista sao até mais apavorantes, e como quanto maior a cerca maior o pulo, geralmente mais bem exorcisados.

Longe de mim concluir com isso que o design é sempre inferior à arte, acho até o contrário. Teoria minha: os artistas encontraram um primeiro beco sem saída com a invencao da fotografia, e tiveram que se desvencilhar da representacao fiel da realidade como seu ideal único. Os primeiros quadros que deliberadamente nao faziam o possível pra parecer com o mundo real chocaram o público. Alguém gostou da reacao e resolveu que chocar o público seria a nova meta da Arte - quanto mais madames ultrajadas, melhor. Seguiram-se alteracoes de cor, forma e perspectiva, paródias, ready-mades e até a volta à representacao fiel, mas depois que um cara sangrou até morrer e teve a performance aplaudida, e um outro espalhou merda na cara, se esfregou numa tela e chamou de pintura, nao tem mais muito território pra surpresas. A Arte entrou num novo beco. E a solucao é, quem sabe, o design.

Há algum tempo, já sao feitos livros e exposicoes sobre o trabalho de designers renomados, catálogos e coletâneas com os melhores cartazes, capas de livro, sites, cadeiras, luminárias. Desvinculados de seu uso comercial, esses itens ganham um caráter exclusivamente artístico, e estando a Arte em crise, por que nao proclamar o design como o novo caminho? A meta deixa de ser chocar o público e se torna incluí-lo num mundo esteticamente rico, antes mesquinhamente restrito ao artista, esse incompreendido, tadinho.

Para legitimar essa transformacao precisam mudar duas coisas na atitude do designer. A primeira é a postura birrenta de que designer nao é artista, apenas por dirigir o seu talento ao mercado. Se, devido às restricoes que por conta disso enfrenta, é algo a mais também, melhor pra gente. Mas nao deixa de ser artista por isso. A segunda é se desapegar das manias que fazem a gente escapar de ser artista. Todo aluno de design, por algum complexo de inferioridade em relacao às carreiras "sérias", se agarra em disciplinas como ergonomia e tipografia, e proclama que "nós também temos teoria!" Mas tenho a impressao de que quem se dedica a fundo no estudo dessas matérias, quem decora as relacoes ideais entre tipo e entrelinha, ou memoriza os ângulos de cada uma das vértebras, quem acha que o mais importante no projeto de um livro é definir o aproveitamento de papel - quem pensa dessa forma é porque se sente incapaz para aquilo que realmente interessa.

O bonito das inteligências referentes à estética de uma forma geral é a impossibilidade de enumerá-las em regras, burramente aprendidas e aplicadas por qualquer burocrata. Portanto, nada de sair limpando as viúvas do texto ou ajeitar todos os trappings e depois pensar que teve uma tarde produtiva. Vamos dedicar mais tempo aos detalhes conceituais e estéticos, e menos às tecnicalidades. Vamos bater nossas próprias fotos, fazer nossas próprias ilustracoes, projetar nossas próprias fontes, quem sabe até nossos próprios materiais. Vamos deixar de ser artistas nao pelo que por comodidade temos a menos, mas pelo que por definicao temos a mais: capacidade de tornar o que é bonito assimilável por todos.

quarta-feira, setembro 14, 2005

Design do Imponderável

Milhares de macaquinhos, em milhares de computadores, sapateando infinitamente nos teclados e digitando incongruências que milhares de impressoras não param pra respirar. É de se esperar que, em algum ponto dessa eternidade hipotética emerja do caos um poema épico, com rima e métrica perfeitas, ou uma grande saga, repleta de aventuras como a criatividade humana jamais concebeu, ou mesmo uma única frase, tão concisa e brilhante que produza em seu leitor um turbilhão e lhe abra caminhos para novos universos.

Ou ainda um único computador, capaz de num espaço definido de tantos por tantos pixels, arbitrar para cada um deles a esmo uma das 256 cores do espectro disponível, produzindo sem parar imagens saídas dessa combinação. Não há dúvida de que, prosseguindo indefinidamene na tarefa, conseguirá em algum momento um simulacro perfeito da Monalisa, ou ainda uma obra original, de beleza tão extraordinária que jamais fora antes concebida por nossa imaginação.

O mesmo para ratos passeando num piano, ou um elefante com um pincel na tromba. Todos modelos teóricos de que o acaso sozinho poderia, se dispusesse de tempo suficiente, produzir as maiores obras primas da História. Mas mesmo pra quem não tem um minuto a esperar, o imponderável também apronta. Quantas vezes a impressão que falhou acabou melhor do que o original? A fonte que abriu errado no computador vizinho se saiu mais elegante do que a pensada? Ou o pote de tinta derrubado sobre o rascunho? Lembro de um trabalho com estêncil feito há dois anos, em que o meu melhor resultdo não foi nenhuma das dezenas de ilustrações mascaradas produzidas, mas sim o próprio papel usado para mascará-las, colorido com o acúmulo de camadas de tinta sobrepostas ao acaso.

Acho que temos muito a ganhar valorizando pequenos acidentes decorrentes de um projeto de design, e até incentivando-os. Comecei a atinar pra isso, e já até comentei tangentemente no segundo post desse blog, ao me deparar com a cidade de Amalfi, na Itália, certeza que permaneceu ao visitar outras cidades medievais européias. A total ausência de planejamento urbano fez com que Amalfi crescesse caoticamente, de todas as formas e para todos os lados, mas nem por isso perdendo a beleza - pelo contrário. Seu charme está em cada canto ter suas nuances e surpresas, sem a previsibilidade de uma cidade planejada. Quem chega constrói sua casa onde achar espaço, a única regra é a do cada um por si. É praticamente uma rerodução do método da natureza, que baseado no randômico das mutações e no individualismo do mais adaptado sobrevive, propicia as fantásticas paisagens do planeta.

Será possível aplicar método semelhante a um projeto de design? Fiz um experimento sobre o tema, que na verdade começou como pura babaquice, mas em função do resultado tão sensacional, resolvi chamar de experimento. Ele pode ser visto no meu multiply, Haus in Heidelberg, dentro do álbum "Fotos da Letícia". Consistiu tão somente em bater fotos da minha irmã, querendo ela ou não. Portanto tinha eu o meu interesse (tirar a foto), ela o dela (me impedir), ambos desempenhados com ardor, e o fator acaso residia na posição da câmera quando a imagem fosse capturada. O resultado foi pra mim espantoso: não considerei nenhuma das iamgens desinteressante, e pelo menos três das catorze tinham enquadramentos geniais. Sem falar nas expressões da Letícia, muito mais autênticas que o burocrático sorriso de foto. Esse método já é, de forma menos radical, disseminado entre fotógrafos de moda e publicidade, que sempre pedem que as modelos, em vez de pararem numa pose, ajam naturalmente enquanto ele clica. Uma das muitas fotos sempre sai com a expressão ideal.

Estudar formas e estratégias de incentivar, facilitar e até forçar o acaso em projetos de design gráfico; descobrir em que temas e áreas de atuação o método se aplicaria melhor; entender até onde se deve seguir com o imponderável e em que momento é melhor voltar à tradição. Se me for permitido, e eu tiver culhão para ir adiante com algo tão diverso e inseguro, me parece um ótimo assunto para o trabalho final ano que vem.

sexta-feira, setembro 09, 2005

Sobre o estágio

Nao quero comecar a me gabar antes da hora, já vi que a chance de solar o bolo é grande. Mas que a entrevista do estágio ontem foi animadora, isso foi.

Nao era essa a nossa perspectiva. A Ecke Design vinha nos enrolando desde meados de julho. Primeiro marcaram para dia 24 de agosto, e mandaram que nós enviássemos portfolios virtuais. Evidente que ninguém tinha portfolio virtual. mas nos enrolamos aqui e mandamos. E esperamos. O dia 24 ia chegando, ninguém ligava pra confirmar. Deu vinte e cinco, nenhuma notícia, chutamos o balde e fomos pra Dinamarca, sempre esperando lá por um contato que nos obrigaria a antecipar a volta. Nada, e acabamos nos estendendo por mais um dia em Copenhague. Assim que cheguei, mandei-lhes um email perguntando se cuméquié. Isso era quinta de manha. Deu sexta-feira. Lhufas. Fim de semana também nao, segunda e terca, silêncio.

Resolvemos ligar. É uma situacao chatíssima, ligar pra cobrar algo que, num contexto normal, quem decide sao eles. Mas está na regra do intercâmbio: seis meses estudando e seis de estágio, azar o deles que foram escolhidos pra nos acomodar. Ligamos. "Cadê a Peggy Truxa?", perguntamos, nao era pra passar trote, esse é mesmo o nome da frau que estava em contato conosco. "Está de férias," respondeu a voz. "Por um ano." Aturdidos, tentamos falar com o seu Ecke, o chefao. Incomunicável. "É o seguinte," repetimos "somos alunos brasileiros, em intercâmbio na Alemanha, estágio, pererê, tem um professor da nossa faculdade que é amigado aí com o seu superior, ele disse que a gente podia ir praí. Mandamos nossos portfolios, você deve estar a par dos fatos."

"Nao," falou a voz. "Pra mim isso tudo é grego." Mas foi lá checar. Ligou no dia seguinte, dizendo: "É, achamos uns arquivos aqui, no computador da Frau Truxa que já estava sendo aposentado. Venham para uma entrevista amanha." Sem qualquer firmeza, nós nos sentindo inconvenientes. O fato é que eles nao precisavam de estagiário, quanto mais dois, pior ainda se nao falam alemao direito. "Ah," disse a voz, pouco antes de desligar. "Tragam os portfolios de vocês, deu pau no arquivo."

A tensao que se criou a partir daí foi se dissipando pouco a pouco. Entramos na firma, saudavelmente informal, e fomos entrevistados pelo todo poderoso em pessoa, que se mostrou a par e satisfeito com a situacao, olhou nossos portfolios com interesse e inteligência, nos deu flexibilidade de horários, em que dia comecar e em que dia terminar, falamos da nossa intencao de continuar cursando ao menos uma matéria na faculdade, a qual ele nao objetou e até incentivou, nos mostrou o trabalho formidável da empresa, principalmente na parte de exposicoes, nos falou sobre qual seria o nosso provável servico, perguntou até se a gente ia querer ganhar dinheiro.

Bom demais pra ser verdade. Tao bom que tem cara de ser fingimento. Tem cara de recepcao do inferno, tudo bonitinho pro sujeito entrar lá dentro animado e cair na danacao eterna, por isso nao quero me antecipar. Vamos aguardar que o servico comece em início de outubro para dar uma avaliacao mais abalizada. Comprador de Mac escaldado tem medo de linguica.

* * *

Em casa fiquei pensando sobre a pergunta "Você quer ganhar dinheiro?" feita na entrevista. Na hora respondi, após alguns centésimos de incredulidade, "Quero". Mas depois inventei algumas respostas melhores:

"Nao. Eu sou rico."

"Sim, vamos ver se assim diminuímos a disparidade entre o Brasil e a Alemanha."

"Guarde pra voce. Voce precisa mais do que eu."

"Claro! Gastei minha última nota de cem dólares acendendo um charuto cubano."

E variantes envolvendo a parte final do aparelho digestivo que prefiro nao publicar.

terça-feira, setembro 06, 2005

Adeus, Café Monaco

Esse título me lembra filme em preto e branco. Daqueles bem chuviscados, esquecidos no porao da locadora. Um dia de tempestade num hangar deserto, a despedida do mocinho e da mocinha. Os dois de sobretudo pardo; ele, olhar contemplativo, talvez o Humphrey Bogart; ela, lamuriosa e aflita, quem sabe a Ingrid Bergman. Os dois se beijam e tenho a impressao de ter descrito sem querer a cena final de Casablanca. Mas o título nao tem nada a ver com Casablanca. Café Monaco é um pub na esquina entre o S-Bahn e o kebab, que serve umas cervejas e acho que café da manha também.

Nunca provei. Vou lá por outros motivos. Mas nao está entre eles usufruir dos inúmeros divertimentos à disposicao, as máquinas caca-níqueis, a sinuca e o pinball. Tampouco prosear com a clientela algo proletária que me faz companhia. Mas chego quase todo dia sempre em torno das onze da manha, para subir ao segundo andar e me sentar em um dos três computadores com internet, de onde confiro minha correspondência virtual, me atualizo sobre a politicagem nacional e escrevo no blog. Como estou escrevendo neste momento, pela última vez do Café Monaco. Adeus.

Posso me arriscar a dizer que é questao de tempo, esse caracol fugidio, para que me chegue em maos um moderníssimo Macintosh PowerBook G4, com 1,67 GHz de velocidade, monitor de 15,2 polegadas, um gigabyte de memória RAM, oitenta de HD, placa de vídeo ATI Radeon 9700 e gravador de DVD. Serve pra tudo, edicao de vídeo, arquivos 3D, jogos de violência gratuita, busca o seu chinelo e faz até um misto quente na chapa se você pressionar a tela contra o teclado.

Um exagero. E portanto, até covardia comparar esse ícone da supremacia humana sobre Deus com o Café Monaco, por mais simpático que este seja, por mais que lhe reconheca os servicos prestados. Jamais me esquecerei do um euro e cinquenta cobrado por hora, módicos para padroes europeus, nem das garconetes que sempre subiam a escada para perguntar sorridentes se eu queria beber alguma coisa, mesmo sabendo que em seis meses nunca pedi nem um cafezinho. Mas pô, já deu. Think different.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Animais Amestrados

Ser poliglota é mole, nao importa o quao esquisita seja a língua em questao, uma semana basta pra tirar de letra. Dinamarquês, por exemplo. Aos meus ouvidos, nao passa de variacoes átonas e tônicas da sílaba "nham" repetidas aleatoriamente, talvez um macaco guinchando consiga se comunicar melhor comigo. Mas eu já sei falar dinamarquês.

E se nao falo, pelo menos sou diversao garantida pra toda a família. Quando me passam a salada, por exemplo, e agradeco com um "Tak", a alegria se espalha. Ou na hora de dar adeus, solto um "Favel!", e aí é que eles nao querem que eu vá embora mesmo. Me pegam pra propor um brinde, levantam os copos e me olham, qual era a palavra mesmo? "Skol!", respondo, e comeca a festa, se nao fosse família era todo mundo de porre.

Interagir com uma língua estranha é um fingimento, você tenta aprender e os outros ensinar, mas os objetivos reais estao longe de serem esses. Como um cachorro que nem lhe passa pela cabeca alcancar a perfeita dramatizacao do falecimento, e tampouco o quer o dono, mas quando um manda o outro fingir de morto, recebem seus respectivos aplausos e biscoitos. Quando o Niels veio ao Brasil esse esquema funcionou sublime, catapultado pela sua boa memória e pelo estoque de palhacadas que lhe era ensinado, muito mais cheias de personalidade que esses bom dias e boa noites. Ao terminar de comer, por exemplo, ele batia na barriga dizendo "estou empapucado!" e se alguém lhe contasse uma piada ruim, sinalizava com desprezo, "muito manjada!".

Mas é claro que a falta de treinamento fez com que fosse se esquecendo gradativamente de todas. Exceto uma: o neologismo "cupiroca" (desculpem ladies), essa aglutinacao boca suja disfarcada de tupi-guarani. O resquício isolado do vasto vocabulário em português de antanho ainda rendeu algumas risadas, mas nao é mais do que um truque, como o cao que rola e o elefante em pé no tamborete. O aplauso quem está ganhando sao as patetices, e nao a tentativa de reproduzir o idioma. E fica o perigo de gostar dos holofotes, se satisfazer com o estado de entretenimento involuntário e se reduzir a animal amestrado.

É uma adestracao burra, nao se tem idéia do que estao te mandando falar, você pode estar papagaiando qualquer troco sem saber que tao te sacaneando. Por isso fiquei aliviado quando vi escrito "Tak" na lixeira do McDonald's, pelo menos esse eu tava dizendo certo. Mas quando a amiga do Niels veio se despedir de mim e disse "My sincerely cupiroca for you!", enquanto ele se mordia pra nao rir atrás, nao tive alternativa que nao desejá-la um bem grande também e mais tudo de bom, a gente se encontra uma próxima vez.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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