domingo, junho 17, 2007

Herói do sabonete

Sofri uma tentativa de assalto outro dia, ou pelo menos acho que. De repente não. Um sujeito maltrapilho chegou falando gingado do meu lado, bigodinho ralo, mulato, camisa velha. Isso umas sete da noite, no vácuo de cidade entre o Downtown e o Cittá America.

— Ae… fala nada.

Não esperei o resto do papo, corri. Nunca mais o vi na vida. Mas depois bateu remorso, talvez não fosse um assalto, talvez ele complementasse:

— Fala nada, estamos perto de um hospital (que não estávamos).

— Fala nada, meu bebê está dormindo (que não havia).

— Tem um marimbondo na sua orelha (difícil).

E agora sinto orgulho por essa covardia que pode ter magoado um homem de bem. Ou mesmo que não fosse, supondo-o o vira-latas oportunista que parecia, fica óbvio que algo se perdeu entre a forma romântica com que eu ambicionava enfrentar a bandidagem quando criança, e essa corrida apavorada da semana passada. Eu moleque sonhava que se alguém invadisse minha casa, o atacaria com um sabonete e o faria engoli-lo inteiro. Não conseguia imaginar tortura maior que sentir aquele perfume escorregadio se pastificando goela abaixo, glicerina mastigada, gordura rosa ensaboando a glote sufocada.

Não tinha planejado como desviar dos tiros, mas tinha certeza que o ladrão ficaria tão surpreso com esse ataque insólito, que enquanto cambaleasse arrotando bolhas pelo quintal, o cachorro já teria comido o bife, se recuperado do chute, e faria o resto do trabalho, não me cabendo portanto a tarefa suja de matar o homem.

Mas hoje eu já não sou macho suficiente nem para reagir, hoje eu só corro. Vergonha. A partir de segunda, levo um sabonete na mochila.

sábado, junho 02, 2007

A sincera opinião de Mozart sobre os Beatles

Pode parecer a princípio, e este blog já andou mal-afamado por isso um tempo, que qualquer linha de raciocínio consistente que desenvolvemos aqui neste canto acabe em no máximo quatro etapas desagüando nos Beatles. É mentira. Senão, rebobinemos um pouco a fita.

1- duas horas diárias sentadas no ônibus do metrô até a Barra.
2- Assim falou Zaratustra no repeat todo dia de música de fundo, durante o o trajeto inteiro.
3- Mozart no repeat mental, contrabalançando a influência nefasta de Strauss.
4- Não os Beatles, mas a música contemporânea de uma forma geral, e a opinião de Mozart sobre ela se fosse teletransportado. É no que eu mais venho pensando ultimamente.

Cada vez que conheço uma nova banda penso em como Mozart a avaliaria pelas convenções musicais da sua época. Não acredito que ele fosse necessariamente achar tudo uma merda, Mozart não é Beethoven, ele tem cabeça aberta, e se está claro que detestaria hip-hop, de repente encontra na Ivete Sangalo uma revolução que só quem perdeu dois séculos consegue enxergar. Por isso seria natural que ele adorasse os Beatles, se não tivesse sido apresentado à música deles por um idiota que botou In my life pra tocar achando que aquele trechinho chupado de J. S. Bach fosse facilitar a assimilação. Mozart saiu chamando Lennon de charlatão, e não adiantou que depois o camarada colocasse I am the walrus, Come together, Norweggian wood, ele achou tudo uma bosta, cada vez mais enfático conforme as músicas de John se seguiam. A mim, no entano, me deu a impressão de que o palavrão depois do fim de A day in the life era o reconhecimento de um adversário à altura, mesmo sem perceber. Eu não sei, acho que aquele crescendo cacofônico vai ficar rodando na cabeça dele, não duvido que ele procure um tempo atrás da fonte do plágio, e quando não encontrar vai admitir afinal que era uma boa música. Mas até lá continuará arrogante, dizendo que se aqueles são os músicos mais aclamados do futuro, ele mandaria o filho ser arquiteto.

Ainda na defensiva, passou batido por Paul McCartney. Grunhiu para Yesterday, sorriu na introdução com pianinho de Martha, my dear e pulou Helter Skelter. O único beatle com quem Mozart simpatizou foi Harrison, e por causa de uma música só, Here comes the sun, que ele chamou de filhote de Kleine Nachtmusik. Chegou a cogitar, rindo abraçado a esse camarada inábil, a possibilidade de retrabalhá-la num movimento extra para Nachtmusik, quando a Nacht – noite acaba e o sol surge. Ele adorou a coincidência temática, ri sozinho, parece até meio senil depois do teleporte. O certo é que adotou George como um aprendiz, um que não lhe representa ameaça pelo talento, mas cuja evolução musical tutelada seria para Mozart muito gratificante.

Esse Mozart teleportado já tem opinião sobre vários artistas contemporâneos. Acho que vou abrir uma coluna neste blog para que ele destile seu veneno. Para breve.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

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+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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