segunda-feira, março 27, 2006

Cinismo

Todo mundo hoje gosta de dizer que é cínico, o que, olhando do ponto de vista cínico, é um contrasenso. Afinal, se você está disposto a fazer maldades e passar por cima dos outros sem nenhuma dó na consciência, convém não espalhar por aí. Mas agora faz até sucesso escrever no currículo “cínico de carteirinha” , o empregador abre um sorriso e diz, enfim um candidato que não se deixa iludir pelos descaminhos da contemporaneidade! Porque o adjetivo cínico perdeu um pouco seu lado perverso e passou a querer dizer “crítico”. Só que a maioria dos que se vangloriam de ter senso crítico, tipo discernimento de mundo, tipo escaldado de fantasias, desanda mesmo pra senso crítico tipo crítico de cinema, tipo bem ranzinza, tipo descontar as amarguras em cima do pobre do cineasta. O deboche como arma, como reflexo condicionado, esses são os cínicos de hoje.

Mas cínico é um adjetivo mutante, que antes de querer dizer malvado insensível, crítico desiludido ou ranzinza debochado já deu nome a uma corrente filosófica na Grécia Antiga. Os adeptos do cinismo achavam que a felicidade não dependia de nenhum bem material, nem de nada exterior a si próprios. Sua filosofia combatia o prazer, o desejo e a luxúria, pois isto impedia a auto-suficiência. Não tinham casa. Não tinham carro, internet, ânforas, nada. Não ligavam pro que achavam deles, não constituíam família, e nem se importavam com dor, saúde e sofrimento, seja a deles próprios ou dos outros (daí terem virado sinônimo de insensibilidade em primeira mão). Diógenes era o maior expoente da corrente de pensamento cínica. Diógenes morava num barril. Sim, Chaves agora também tem referências cultas. Diógenes além do barril não tinha mais do que um cajado e uma cumbuca pra pegar água. Aí um dia viu um garoto pegando água com a mão, e arremessou a cumbuca no lago dizendo, como fui cego em não perceber o quanto me és supérflua!

E Diógenes pode ter desencadeado também a interpretação debochada do cinismo. Ele quis contestar a afirmação de Platão, de que o homem é um bípede sem plumas. Depenou uma galinha e soltou-a -– eis o homem de Platão, – disse, o que não é só deboche, é uma crueldade com a galinha. Pense num tricerátopes concluindo, os dinossauros são predadores sem pêlos, e vem um tiranossauro, morde fora o couro cabeludo de um cara qualquer na rua, e joga o sujeito escalpelado pro alto dizendo, eis o dinossauro do tricerátopes!

Ainda que afeitos a ironias dispensáveis, os primeiros cínicos estavam mais próximos da verdade do que os de agora. Seu voto de pobreza converge, guardadas as devidas proporções, com a filosofia politicamente correta, arquiinimiga dos debochados. Os cínicos atuais se desvirtuaram em cascata da filosofia original, por isso a insensibilidade que exibem não os leva a lugar nenhum, serve de máscara pra não se expor e envolver com o mundo exterior. Aos poucos vou percebendo que as pessoas que mais admiro são justamente as menos cínicas, aquelas em que aflora sinceridade, inocência e entrega, as que têm menos defesas mas nem por isso mais desprotegidas. Eu até lançaria um movimento pelo retorno do romantismo e da ingenuidade, não fosse a tentativa de resgatar arbitrariamente valores que me beneficiam de forma direta uma atitude, até certo ponto, cínica.

terça-feira, março 21, 2006

Docontrismo

Agora que os hippies quase todos já morreram engasgados no próprio vômito, o pós-modernismo vive seu auge, os Estados Unidos, o PT, o cristianismo e até a Disney perderam o encanto, fica meio inconsistente sustentar ideologias. Sua pretensa intransigência num mundo sem verdades absolutas acaba dando marge pra corrupção e desvirtuamento. A menos que você seja um docontrista. O docontrismo é uma filosofia naturalmente volúvel, porque depende exclusivamente da filosofia do interlocutor. O que quer que ele defenda apaixonadamente, nós somos contra.

Ecologia? Quem é capaz de levantar a voz contra os clamores de proteção ambiental que eclodem mundo afora? Nós. Não vemos razão pra tanto escarcéu, se já está provado que são as algas marinhas que respondem por noventa por cento da renovação de oxigênio da Terra, e se os milhares de remédios escondidos na Amazônia ainda estão, bom, escondidos, e nós vivemos muito bem obrigado sem ainda tê-los descoberto. Mas venha um madeireiro me repetir essas bazófias, e você vai ver como eu não pego uma placa de salve o verde e dou com ela na cara dele.

Se eu vou votar no PT ou no PSDB na próxima eleição? Depende. Em quem você vai votar? O docontrista clássico escolheu Enéas sempre que ele se candidatou a presidente, mas assim que foi eleito deputado com um milhão de votos, começou a se preocupar gravemente com o crescimento do fascismo no Brasil. Ah, você também está tenso com o renascimento da extrema-direita na Europa? Acha um absurdo o Holocausto? Olha lá, não me provoque.

Podem nos encurralar com sua gritaria antiamericana, armaremos uma barricada defendendo a invasão do Iraque, construída não nas trapalhadas do governo Bush, mas na inconsistência dos argumentos de vocês. Resistiremos até o último homem. Ou não. Ou até que nossa excessiva proximidade revele nossos pontos de vista em comum; nada mais instável do que dois docontristas juntos. Os mais afoitos de nós se rebelarão e tentarão se bandear para o outro lado, e quando saírem da trincheira hasteando bandeira branca acabarão metralhados pelo inimigo, que confundirá a rendição com tentativa dissimulada de revide. Sob fogo cerrado, perderemos completamente o controle, alguns farão ataques suicidas, outros levantarão argumentos ainda mais radicais que os inimigos, a maioria adotará uma posição pacifista, não por prezarem a paz, mas pra se colocarem contra todo mundo. Uns virarão niilistas provisoriamente, querem mais que tudo se exploda, e uns poucos, muito poucos mesmo, perceberão que, sejam niilistas, pacifistas, suicidas, docontristas, anti ou pró-americanos, suas idéias estarão sempre dependentes de uma lógica alheia. E pra se libertar das amarras do pensamento atrelado a ideologias, e desenvolver idéias independentes, calcadas na própria personalidade, precisam comer ainda muito feijão.

quarta-feira, março 15, 2006

Los Ex-manos

Assisti faz pouco um DVD documentando um show dos Hermanos no Cine Íris, e aquilo que eu já sabia ficou ainda mais evidente. Não é que eles tenham apenas respaldo crítico quase unânime, aclamada que é toda a discografia da banda. O que desbunda mesmo é a veneração que despertam no público. Bastam duas notas pra que a platéia inteira antecipe de cor a letra da mais underground das músicas, são todas cantadas com devoção tal que chega a passar por cima do próprio grupo.

Uma pena que estejam na beira de se dissolver. Conta que os Hermanos viraram fachada para um longo e dissimulado confronto de egos, como costuma acontecer com bandas que têm dois compositores. Marcelo Camelo é xodó da mídia, melhor compositor brasileiro segundo Maria Rita, porta voz de sua geração que genuinamente recusa o rótulo, o que só o torna ainda mais porta voz. Que era justamente o que Rodrigo Amarante queria ser. Amarante é o outro compositor do conjunto, e é esse outro que o incomoda. As músicas que escreve não são ruins, mas murcham diante das obras-primas de Camelo. Ele justifica sua inveja argumentando que, tivesse ele o dom do companheiro, usaria-o não só para expressar sua veia artística, mas para conscientizar o povo, ao contrário desse egomaníaco que se enfurna meses na casa da serra para aperfeiçoar cada acorde, um por um.

Mas Amarante é cristão, estudou no Santo Agostinho e depois na Puc, e sabe que qualquer justificativa é paliativo para encobrir a podridão de seu sentimento. Por isso não reclama ao ver os shows divididos desigualmente entre as composições dos dois, ainda que se desdobre nas maracas, no tamborim e nos pratos para tirar um pouco da atenção do vocalista. Mas o que poderia estar ali, no meio do encontro dos pratos nas mãos do Amarante era a cabeça de Marcelo Camelo, e quando ele se sente assim ele não agüenta, ele ofende, ele toca no lado pessoal, ele fala:

Orelhudo!

Mas geralmente não tão direto, é de uma forma mais escudada; Marcelo, acho que você não devia cortar o cabelo não cara, é melhor assim que ele fica por cima das orelhas, disfarça. Camelo acusa o golpe muito fácil, treme o olhar, finge continuar estudando as notas no violão. Amarante às vezes se arrepende, às vezes continua, fala da barba do colega, que faz um bom papel disfarçando o queixo de moça virgem, nessas palavras, e o Camelo fica abalado de verdade, ele é, como o amigo sempre suspeitou, um fragilíssimo egocêntrico, só que do tipo que não sabe o quanto preza o próprio umbigo. Camelo não fuma, pouco bebe e esmerilha dia e noite suas belas composições nem tanto por zelo artístico, mas para criar um contraponto virtuoso ao Rodrigo Amarante, que na volta de uma noite girando pelas boates do Leblon, senta na cama e apóia uma folha de papel na bunda de uma das três admiradoras que levou pra casa e escreve de uma só tacada as quatro músicas que incluiria no disco. Ao lado do Amarante elétrico, Camelo adotou postura quase autista, que o impede de ver que criou sua persona apática calcado em inveja tão grande quanto a que o outro sente por ele. Na sua inconsciência genial sequer notou que, ao fazer a letra para Cara Estranho, música de trabalho do disco Ventura, criou um sistema criptografado no qual, tomando sempre a décima letra de cada verso, forma-se a frase AMARANTE PANACA.

Foi em janeiro último que Rodrigo Amarante descobriu a mensagem, e o equilíbrio instável no qual se escorava o grupo ruiu de vez.

Panaca é a puta que pariu, já chegou ele falando, e o Marcelo Camelo imediatamente entendeu a que ele se referia. Mas acovardou-se, atribuiu a ofensa a uma suposta mania de perseguição do Amarante. Orelhão, viado, queixola, o parceiro não parava de xingar, rodando em volta, investindo, rosnando sem nunca atacar, sem nunca dizer o que Camelo o tempo todo esperava que dissesse, que falasse a banda é minha, Los Hermanos e suas músicas estão registrados no meu nome, e você está fora. E percebeu que Amarante, mesmo no auge de sua ira, tinha medo de perder o sucesso do qual não se julgava merecedor, o que seria da banda sem seu principal alicerce? Por isso aos poucos as estocadas do colega foram demolindo a fachada autista de Camelo, sangrando seu sangue de barata, e ele disse, a mesma expressão neutra de sempre, que sabe a Ana Júlia? Você acha que quem compôs essa música fui eu, mas quem realmente a escreveu foi a sua namorada da época, a Denise. E ela me dedicou a canção, ela foi até debaixo da minha janela e fez uma serenata, e me conquistou, tivemos uma noite de trepadas homéricas. Mas depois modifiquei a letra, coloquei Ana Júlia onde ela cantava Marcelinho, e retirei as partes pornográficas, o refrão que exaltava o tamanho do meu pinto.

Amarante parou, nem percebeu que Camelo morava no oitavo andar, ninguém podia lhe fazer serenatas. Terminou pulando em cima do colega e descarregando a mágoa no tapa, quebrou-lhe o nariz. Camelo apareceu na mídia com uma máscara facial, o Chorão comunicou através da assessoria de imprensa do Charlie Brown Jr. que nada tinha a ver com os novos ferimentos do músico, e ainda este mês os Hermanos anunciarão a defecção de seu principal compositor, que planeja formar uma banda com o nome de Bloco do Eu Sozinho.

terça-feira, março 07, 2006

O que nao mudou (mas parece que mudou)

Não sei bem onde fica, no meu cérebro, o motorzinho que ligou de novo assim que cheguei ao Brasil, e que se encarregou de cuidar da minha readaptação. Ele fez questão de enterrar o temor que eu tinha de achar enfadonha minha velha rotina, de sentir falta de Alemanha, se empenhou tanto na tarefa que é como se eu nunca tivesse saído. Parece que continuei todo dia comendo os meus sanduíches de requeijão enquanto lia a seção de esportes na cozinha. Eu, que há um ano não lia jornal impresso, que há tanto tempo não besuntava pão e bolo com Itambé, não senti nada de especial em voltar a tomar café da manhã em casa. O primeiro sanduíche de requeijão foi igual a qualquer outro, foi como se eu tivesse comido um igualzinho no dia anterior.

Da mesma forma, o bafo de quarenta graus que tanto me apavorava não está mais insuportável do que era ano passado e o misto quente com Calvin e Haroldo na casa do meu pai nunca foi tão familiar. Estou desconfiado que o motorzinho está querendo apagar o intercâmbio da minha memória. Mas tem uma ou duas coisas que já viraram reflexo condicionado, e vai dar mais trabalho.

Por exemplo, onde foi parar o botão da porta do metrô? Quer dizer que aqui no Brasil a porta abre automaticamente, não tem que apertar nada? Estão me deixando maluco os poucos instantes enclausurado no vagão esperando a providência, sem nada a fazer pra ter certeza de que vou poder sair. E o Rio, essa cidade sempre teve essas cores tão saturadas assim mesmo? Foi um barato sair do aeroporto e ver o céu azul, as árvores verdes, tudo em tons tão intensos, uma volúpia que tinha escapado pouco a pouco da minha retina à medida que o inverno vai transformando Berlim numa cidade exclusivamente preta e branca.

Sem falar nesse tanto de gente falando português na rua. Meu ouvido fica alerta, ele reconhece a língua e já pensa, um brasileiro! Brasileiro no exterior é uma situação diferente. Dependendo do humor, você foge e fica na surdina, prestando atenção no que eles conversam enquanto acham que ninguém está entendendo. Ou já vem se apresentando, ganha instantaneamente um amigo, e se for menina ainda leva dois beijinhos de lambuja. Mas aqui ninguém está assim tão predisposto a dar beijo só porque compartilhamos o mesmo idioma. Tenho que destreinar meu ouvido, senão logo logo fico encurralado.

E os preços? Voltei mais pão-duro ainda. Já não basta a inflação, ainda estou com esse resquício de enxergar tudo em euro. Outro dia deixei de comer no Bob’s porque a promoção tinha aumentado de oito reais pra trinta. Antes de eu sair era oito, em um ano subiu pra dez, e como só penso em euro, converto os dez euros pra trinta pilas.

São várias pequenas surpresas a se enfrentar agora que estou de volta, mas por mais inconvenientes que às vezes sejam, prefiro preservá-las. Porque já me readaptei tão instantaneamente que periga só trazer de lucro do intercâmbio as fotos.

Aliás, fotos e legendas, do ano novo à última viagem, já estão todas prontas no link ali do lado, Haus in Heidelberg.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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