terça-feira, novembro 29, 2005

Cidades com B

Das quarenta e seis capitais européias, vinte e seis, ou quase dois terços, começam com cinco letras específicas.

Quatro com A: Amsterdam, Atenas, Andorra e Ancara

Quatro com L: Londres, Lisboa, Ljubljana e Luxemburgo

Quatro com M: Moscou, Madri, Minsk e Mônaco

Seis com V: Viena, Varsóvia, Valetta, Vaduz, Vilnius e Vaticano

E oito com B: Berlim, Berna, Budapeste, Bruxelas, Bucareste, Bratislava, Belgrado e Baki. Poderia forçar um pouco a barra e incluir Belfast, capital da Irlanda do Norte, ou dizer que em muitas línguas o V e o B se confundem, mas não é necessário torcer estatísticas para evidenciar que a Europa é amplamente dominada pela letra B. Um país em cada seis batizou com ela sua principal cidade, todos de relativa importância com exceção do Azerbaijão.

Me veio então a idéia de uma alternativa à União Européia: a União dos Países Europeus cuja Capital Começa com B. Ela se espalharia desde Bruxelas, no canal da Mancha, passando pela Alemanha, Suíça, e supondo que a Eslováquia conquistasse a República Tcheca, continuaria sem interrupções através da Hungria e Romênia até o Mar Negro, e cruzando-o, atingiria o Cáspio, além de um braço para o Mediterrâneo através da Sérvia.

Mas pra quê esse regionalismo europeu? Extendendo-se em um pacto mundial, essa poderosa organização incluiria potências emergentes sulamericanas, como Brasil, Colômbia e Argentina, e tigres asiáticos como a China e a Tailândia, todos praticando o livre comércio, abrindo suas fronteiras e trocando culturas baseados no seu ponto em comum, em sua mais significativa semelhança, as capitais que começam com B.

Aliás, a letra B está em alta entre as capitais do mundo. Faz maioria também nas Américas, seis ao todo, e sobrepuja as letras adversárias também na Ásia, onde são oito. Na África, atinge um honroso terceiro lugar, também com seis capitais. De tão abrangente, o pacto teria enorme alcance diplomático, podendo intervir no genocídio do Congo (capital Brazzaville), na grave questão árabe no Líbano (capital Beirute) ou mesmo na guerra americana (capital sem B) no Iraque (capital Bagdá), cidade esta que é um marco para as capitais com B. Bagdá é a cidade mais antiga do mundo, a que inventou o conceito de urbanidade, de que uma comunidade sedentária infraestruturada de pessoas vivendo sob regras de conduta comuns teria mais chance de sobrevivência do que tribos nômades. Bagdá já foi Babilônia, eixo do império de mesmo nome, a cidade mais poderosa do mundo.

Cidades com B foram determinantes na História. A era Medieval acabou com a tomada de Constantinopla (antiga Bizâncio), Beijing não é só a atual capital chinesa como a cidade central de um enorme império que remonta a séculos antes de Cristo na antiguidade, e aliás, Cristo nasceu em Belém. Boston foi a primeira cidade das treze colônias americanas, fundada pelos imigrantes do Mayflower, pouco depois seguida por Baltimore – e não imagino o que seria dos Estados Unidos sem essas duas. Ou da Espanha sem Barcelona, da Inglaterra sem Birmingham, da Itália sem Bolonha ou da França sem Bordeaux – ou onde ficaria o governo da Alemanha Ocidental se não houvesse Bonn? As cidades com B têm tudo a ver com o renascimento urbano e o colapso do feudalismo, ou não teriam sido chamadas de burgos, e seus inúmeros exemplos espalhados em nomes de cidades mundo afora – Hamburgo, Estrasburgo, Salzburgo – e até Nova Friburgo.

* * *

Algumas letras podem ser associadas a determinadas categorias. Frutas costumam começar com A, bebidas com C, atacantes da seleção com R. Do mesmo modo, não se pode pensar em cidades sem pensar na letra B, nem na letra B sem pensar em cidades. São conceitos interdependentes.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Reconstruindo Varsovia

Polônia, 1939. As tropas alemãs atacam de um lado, e num movimento sincronizado, as soviéticas invadem o outro, desencadeando a Segunda Guerra. Varsóvia é bombardeada pela Luftwaffe, e depois da traição de Hitler, liquidada por Stalin. Espalham-se escombros pela outrora radiante capital polaca, do castelo sobra só uma coluna, do restante é melhor demolir o que ficou em pé e começar de novo do que ficar brincando de quebra-cabeça com as mil peças dos destroços.

E é o que fazem os poloneses. Baseando-se em fotografias antigas, pinturas, memórias, e as poucas plantas urbanísticas restantes, refazem rua a rua a paisagem de Varsóvia antes da guerra. É claro que o objetivo da reconstrução nunca foi promoção turística, fora do dicionário dos países da cortina de ferro. Mas pra quem chega lá agora e vê tudo limpinho coloridinho, é como se fosse.

Pensem em Walt Disney, ou seu secretário para assuntos de parques temáticos, incumbido da função. Ele contrata um urbanista, um arquiteto, um paisagista, um engenheiro eletricista, um agitador cultural e um sanitarista. Essa equipe jovem, multitalentosa, sedenta em escancarar ao mundo suas qualidades artísticas e projetuais, é a responsável pelo resgate da magia da vida no século XVIII, uma Varsóvia intocada não só pelos bombardeios como pelas mazelas da modernidade.

O urbanista contratado é um jovem prodígio de 26 anos. Ele estudou a fundo as plantas restantes de Varsóvia, mas devido ao seu péssimo estado de conservação e à inexistência de datação em cada uma, foi incapaz de reconstituir com perfeição o mapa da cidade. As diversas lacunas, entretanto, preencheu com arroubos de genialidade, misturando vielas para confundir o visitante, criando planos tridimensionais, com pequenas pontes, becos, ou ruas estreitas desembocando em espaçosas praças de mercado, regidas por majestosas catedrais.

As catedrais, e toda a geografia múltipla de casas em diferentes estilos, como cabe a uma cidade que viveu todas as épocas em igual esplendor, couberam ao arquiteto. Igualmente novo e ainda mais ousado, ele fora selecionado entre outros cem, numa concorrência que demandava a apresentação de um castelo, uma catedral, uma villa em estilo neoclássico e um conjunto de quatro casas medievais, todos com fachada e planta baixa. Seu projeto não foi o único a incluir rampas de acesso para deficientes às catacumbas da igreja, nem elevadores para cadeiras de rodas na torre do palácio e traduções em braille para as tabuletas do ferreiro e carpinteiro, ponto na época ainda polêmico. Mas o fez com tal discrição, camuflando-os tão bem no ambiente medieval, que o júri não teve dúvidas em selecioná-lo.

O paisagista era de uma vertente mais conservadora, conveniente ao tipo de empreitada. Salpicou as ruelas com bancos e lampiões a gás art nouveau, coloriu as praças com mil lírios, gerânios, rosas, cravos, pintou as casas em cores harmônicas, criando na parte ocidental um setor em tons azulados, na sul, perto do castelo, outro com tons apastelados e na região na margem do rio, um setor em tons de terra, para fazer o contraste. Na praça central deixou que os tons fluíssem livremente, espalhando um catálogo de tintas em frente a cada casa e pintando-a arbitrariamente com a cor que sorteasse, para resultados descritos como espetaculares.

O engenheiro eletricista era um técnico. Sua insistência em substutuir os lampiões por postes de luz elétrica ligados por uma fiação que macularia o ambiente proposto não caiu bem entre os outros membros do grupo. O paisagista, nascido num bairro pobre de Nova York, pagou do próprio salário para que ele fosse assassinado.

O agitador cultural mergulhou fundo na cultura polonesa, da Idade Média ao Iluminismo. Sua dupla formação – era também graduado em História pela universidade de Yale – certamente fora decisiva no processo de seleção. Outro fator relevante foi o sobrenome: Disney. A sombra do padrinho tornava suas idéias mais palatáveis a seus superiores, mas ele, consciente da situação, tinha excessiva cautela em propor soluções extravagantes, com medo de que fossem aceitas apenas por causa da influência temerária do tio. Por isso não foi além dos restaurantes em ambiente rústico servindo comida medieval, polonesas com saias e chapéus típicos fazendo as vezes de guias turísticas, passeios de charrete e artistas de rua: seresteiros, homens estátua, mímicos, violinistas, companhias de teatro, esgrimistas, corais, todos munidos de recipientes para a coleta de moedas.

A maior conquista de engenharia de todo o projeto foi o sistema subterrâneo de recolhimento de donativos. Ele corria invisível por debaixo dos paralelepípedos, ligando as cumbucas sem fundo dos artistas de rua a um cofre central nos porões do castelo. O sistema impedia que os artistas, contratados pelo governo com salário fixo, furtassem parte de seus ganhos diários em proveito próprio, e foi uma das diversas atribuições extras que exerceu o último integrante da equipe, o sanitarista, cuja inventividade em tudo que concerne a tubulações foi um achado por parte dos empreiteiros. Sua tarefa quando contratado era somente projetar o sistema de drenagem das ruas da nova velha Varsóvia, mas trabalhava com tanta paixão que acabou se dedicando, sem nem mesmo se lembrar de cobrar, a várias outras tarefas, incluindo uma boa idéia para a condução da fiação elétrica dos postes por baixo da terra, que estava em vias de concluir quando o engenheiro eletricista foi assassinado.

Os turistas, evidentemente, não ficam a par de nenhum desses pormenores. O que lhes é contado em pôsteres expostos na praça central se resume a exaltar vagamente o heróico esforço de restauração, atribuindo o mérito não à Walt Disney Inc. e sua equipe prodigiosa, mas aos moradores da cidade, que no máximo trabalharam como pedreiros. Ao entrarem na ilha medieval reconstruída, os visitantes se sentem tão imersos em alta cultura, tão transportados a um outro mundo, que nem percebem estarem patrocinando uma encenação extemporânea.

Foi assim nos primeiros dois meses, até cair um pedaço de bosta no ombro de uma turista coreana. A explicação para tal despropósito, só podia haver uma: o engenheiro eletricista sobrevivera ao atentado. Os marginais novaiorquinos contratados pelo paisagista, ignorando a geografia polonesa, não sabiam que o rio Vistula era raso, tão raso que um homem de um metro e noventa, atirado de um penhasco amarrado a uma corrente de dois metros e meio com um peso na ponta, conseguia ficar, esticando o pescoço, com a boca e o nariz pra fora d’água, sobrevivendo por dois dias até que alguém o notasse. Ele espertamente se manteve escondido, tramando em segredo seu plano de vingança: reuniu secretamente sobreviventes de guetos e campos de concentração das redondezas, e incitou-os a vir morar nas novas residências construídas no coração de Varsóvia.

A massa de desabrigados disputou a tapa a oferta, e se mudou em conjunto coordenada pelo engenheiro numa madrugada de alta temporada turística. A boa impressão com as belas fachadas foi por água abaixo na primeira vistoria dos interiores – os apartamentos não possuíam nenhuma estrutura, não tinham móveis, divisão de cômodos, cozinha, nem sequer banheiro, forçando os novos moradores a esvaziar seus penicos pela janela. A revitalização do antigo costume fez várias vítimas entre os turistas naquela tarde, e aliada à forte chuva e à sabotagem do sistema de escoamento projetado pelo sanitarista fizeram espalhar doenças pelo centro histórico, incluindo algumas erradicadas já há algum tempo. Além disso, os desabrigados que não conseguiram se instalar em uma das casas começaram a emboscar os visitantes com as armas que tinham, paus e pedras, a escravidão dos turistas negros foi autorizada e algumas das mais belas turistas orientais e árabes foram tomadas como concubinas do rei. Vários outros turistas foram aleatoriamente acusados de hereges e queimados numa inquisição improvisada, e quando alguns deles começaram a achar que a ambientação estava passando dos limites e tentaram sair da cidade, descobriram que o centro histórico tinha sido cercado pelo exército otomano.

sexta-feira, novembro 18, 2005

Falta de assunto

Já desde o fim das férias que ando meio engarrafado. As demandas vão se acumulando na boca do funil e as idéias para resolvê-las pingando a conta-gotas. Essa semana transbordou pro lado de cá: não consegui arrumar assunto pra escrever no blog. Já aconteceu antes, mas agora meu estoque de emergência, textos anacrônicos postados sempre que a imaginação falha, acabou. O que se faz? Entupir de diálogos, mas o quê, se não tenho nem tema para fazer alguém conversar? Pular muitas linhas, aumentar a fonte, escrever na vertical, tudo isso precisa de um mínimo de conteúdo pra ser embromado. Poderia falar sobre a própria falta de assunto, que é o que fiz até agora, mas com perspectiva de guinadas súbitas em breve, tomara. Outra possibilidade é ser mais autêntico e não escrever até que um bom tema surja, já que não tem ninguém me pagando pra cobrar prazos. Mas agora já estou escrevendo, dançou.

Posso falar do tempo, das perspectivas de neve ainda essa semana, mas fica parecendo conversa de vizinho no elevador. Ou digressionar sobre alguma trivialidade do cotidiano, mas não posso falar de nada do que aconteceu essa semana, pra não dar pista que meu pai tá aqui. Meu pai me proibiu de mencionar a passagem dele por Berlim pra me visitar. E que se fosse absolutamente necessário, em caso de última urgência, então que ressaltasse em maiúsculas que só veio porque emendou essas férias num curso da Petrobrás que ele fez na Inglaterra, senão ia todo mundo ficar achando que eu sou muito dependente. As circunstâncias o impeliram tão ululantemente que ia ficar até feio se ele não viesse.

Aí complica, não ter assunto e ainda ser impedido de falar que no fim de semana passado fomos pra Dresden, que em meio à neblina constante abriu sol durante dois dias só pra gente poder conhecer a cidade e as montanhas no vale do rio Elba que têm nos arredores, que além dos livros meu pai me trouxe também suco de caju, feijão já cozido e um CD do Brian Wilson, e que os planos pra esse sábado e domingo são de ir pra Varsóvia, mesmo que a temperatura lá já esteja abaixo de zero.

E ó, meu pai me mata se alguém souber que exatamente na hora que o mocinho e a mocinha trocam alianças no filme do Zorro ele soltou o maior, registrado pelo Guiness Book of Records, ronco do mundo e o cinema inteiro veio abaixo de risada, então bico fechado, cala-te boca, vaca amarela cagou na panela.

Na verdade essa censura toda tá me cheirando mais é a ciumeira pintada de psicologia inversa, que ele queria mais era ter um post só pra ele como aquele da minha mãe em julho, mas a gente finge que não percebe e dá-lhe uma bicuda no balde que tava lá pra ser chutado mesmo. Pai, esqueça o título do post, esse fica sendo o seu, pra empatar o jogo.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Sobre o futuro negro deste blog

Milhares de cartas chegam aqui em casa todos os dias desde aquele post das listas. Todas indignadas. Me chamam de incongruente e exibido, a maioria apontando a não publicação da lista dos dez melhores livros como o auge da falta de lógica. Teria eu dito – explicitamente, garantem – que levo só três listas a sério: a de músicas, a de filmes, ambas já divulgadas, e a de livros. Razões para a omissão da última no post retrasado variaram conforme a criatividade das cartas, do papo furado de pseudointelectual descartando pras garotinhas trunfos que não tenho, à cumplicidade num esquema internacional ecofanático tramando a reciclotransformação de todos os livros de volta em árvores.

Saindo do conceito de dez mais e passando ao de náufrago em ilha deserta, o único livro que eu não deixaria que virasse de volta palmeira pra me dar cocos e proteger da insolação é o Se um viajante numa noite de inverno. Já o mencionei antes, fala de um leitor que começa a ler uma história que para no meio, e quando vai buscar sua continuação descobre que está lendo outro, que também para no meio, e ao procurar o seu desfecho acaba lendo um terceiro, e assim por diante, os capítulos intercalando as primeiras páginas de cada livro com os cada vez mais bizarros percalços enfrentados para consegui-los.

Genial, mas também extremamente cerebral. Não é leitura de ônibus, não prende da primeira à última página. A primeira vez que li, parei no meio de tão chato, mas as outras duas fluíram sem dar tempo de respirar. Me motivou a encarar os autores de quem eu tinha medo. Alguns deles meu pai me traz hoje, Borges, Dostoievski, Tchekov, Joyce. Já Guerra e paz e os sete volumes de Em busca do tempo perdido ficam me esperando no Brasil.

Em alguns meses terei lido estes e mais alguns livros de conteúdo impenetrável. Começarei então a destilar essas influências no blog. O objetivo primeiro será tirar da leitura todo o seu prazer emocional. De início, sangrarei o sujeito das histórias, retirando-lhe qualquer traço de personalidade, restringindo-o a uma terceira pessoa sem nome do singular. Em seguida, darei flagrante prioridade a substantivos abstratos, abolirei descrições e ações que se passem fora da cabeça atormentada dos personagens, dificultando qualquer reconstrução mental que facilite ao leitor a visualização de uma cena. Verbos serão gradativamente reduzidos ao mínimo essencial, o narrador, se existir, aproveitará a menor fagulha para imergir em digressões, jogos estilísticos e palavreado denso.

O passo final será desprover a escrita de todo o seu conteúdo semântico, medida que se levada ao extremo implicará em textos formados por palavras desconexas, cuja seqüência de sons e ritmos por si só é suficiente para a apreciação estética. Ou não simplesmente palavras, mas sílabas, seqüências de letras inexistentes no Aurélio que juntas evoquem melodias irreproduzíveis, pássaros cantando, folhas farfalhando com a chuva fraca, tudo o que na natureza é muito melhor contemplado do que nas experimentações de um texto vanguardista.

No final, as vovós resmunguentas que espionam o tráfico e inventam conspirações acabam acertando. É, sou a favor de recuperar as Bélgicas e os campos de futebol perdidos na Amazônia com as páginas dos livros chatos do planeta, antes de sermos consumidos pela empolação literária que torna todo mundo que se mete a escrever tão pedante. Eu sou caso perdido; vocês, se cuidem.

terça-feira, novembro 08, 2005

A bandeira da Pomerania

Pra se ver como uma coisa puxa a outra, e devagar o que começou com uma gota d’água vira, não uma tempestade, mas sei lá, qualquer coisa, um purê de batata.

Quando eu era pequeno tinha mania de colecionador. Achava coleção uma atividade nobre, um objetivo de vida com muito mais significado que jogar bola e tirar boa nota. Mas em vez de colecionar o que normalmente é colecionável, selos, figurinhas, latas de cerveja, juntava qualquer treco que me parecesse suficientemente bizarro, entre eles:

- bolas de gude
- chapinhas (mesmo sem tomar refrigerante)
- gibis da Mônica
- canudos do McDonalds (só valia do McDonalds, tinha uns cem iguais)
- adesivos na porta do quarto (valia qualquer coisa, nenhum critério)
- pôsteres do Vasco

Mas parecia que eu estava só juntando lixo, nenhuma dessas coleções tinha o apelo de um mural de borboletas, uma estante com garrafas importadas. Querer ser criativo juntando objetos inusitados e ao mesmo tempo que tivessem um mínimo de encanto me consumiu muitos dias de reflexão, até remexer numa gaveta e descobrir um antigo presente da minha vó, que ao voltar de Guarapari me trouxe a bandeira do Brasil e boa parte dos estados. Uma coleção já começada, pouco óbvia e com certo valor agregado.

Virou obsessão. Quen viajasse pra fora já sabia qual era a minha encomenda. Uma vez fui no Pizza Hut com meu pai especialmente pra comer as pizzas típicas do México, Suíça e Coréia do Sul. Horrorosas, mas saí de lá com as três bandeiras da promoção. A coleção foi aumentando. Nunca cheguei nem perto de completá-la, ainda me faltam itens básicos, como Portugal, Egito, Colômbia, mas tive pra lá de um quarto dos países do mundo, um ou outro estado americano, algumas heráldicas inglesas, e noventa por cento dos estados brasileiros.

A coleção e o conhecimento adquirido através dela me rendeu um memorável trabalho de faculdade, analisando graficamente as bandeiras de Antigua & Barbuda e Turcomenistão para concluir que, na improvável hipótese de alguém que tudo soubesse sobre esses dois países mas não conhecesse suas bandeiras, seria fácil, deduzindo pelos elementos de cada uma, dizer de onde eram. Me fez descobrir um site na rede que lista e dá notas para cada bandeira, deixando a brasileira como última colocada entre as nações independentes e a da Gâmbia em primeira (é uma bela bandeira, de fato). E me fez parar ontem na rua ao passar em frente a um restaurante que exibia na frente a bandeira da Pomerânia.

Minha coleção de bandeiras deve estar às traças no Brasil. Já estava antes de eu vir pra cá, várias furadas, traça mesmo, não é metáfora não. Mas ainda corre sangue em suas veias. Ao ver a bandeira da Pomerânia, assim de bandeja, ela voltou à vida, quase ejaculou. A bandeira da Pomerânia é conhecida entre os especialistas como a mais rara de todas, devido às circunstâncias de sua breve existência como nação.

A Pomerânia foi um reino independente por dois séculos no início da idade média. Tirava sua força e influência da exportação de sal, item indispensável na época para a conservação dos alimentos, abundante nas minas da região, que chegavam a cem metros embaixo da terra. Mas a invasão dos hunos, que provocou as derradeiras migrações dos povos bárbaros, estabelecendo por exemplo os francos na Gália, os visigodos na Hispânia e os saxões na Grã-Bretanha, foi fatal para a Pomerânia. O reino não conseguiu se reerguer depois da morte de Átila, o líder huno, e teve seu território reclamado pelos poderes adjacentes, Polônia, Grande Morávia e Hungria. Mas esgotadas as minas de sal, minguou também o interesse dos vizinhos pela região, e a área passou vários séculos em suspenso, sem fronteiras definidas, o pau comendo em volta sem que fosse sequer notada.

O nacionalismo pomerânio só foi renascer em 1848, seguindo uma série de revoltas na Europa, mas de forma tão tímida que não precisou de uma semana para o Império Austro-Húngaro sufocá-lo. A oportunidade seguinte foi no final da Primeira Guerra Mundial, com o desmembramento desse mesmo império, mas, ao contrário da Hungria, Romênia, Iugoslávia e Tchecoslováquia, a Pomerânia só foi reconhecida dezoito anos depois do Tratado de Versalhes. Durou pouco: dois anos depois, Hitler tomava conta do Leste Europeu, e a Pomerânia foi no bolo.

Com a derrota do Terceiro Reich, o país foi dividido entre a Polônia e a União Soviética, e um movimento nacionalista novamente eclodiu. Mas Stalin, no auge de seu poder, não só massacrou toda a população pomerânia, mandando os poucos sobreviventes para o exílio em Vladivostok, como proibiu a reprodução e propagação de símbolos do país, como o brasão, hino, e claro, a bandeira. Com o colapso soviético, não havia mais pomerânios para lutar pela independência de seu país, e assim a região continua dividida entre a Polônia e a atual Ucrânia.

E estava assim, a bandeira dos caras ali, na minha frente, num restaurante especializado em comida pomerânia. Entrei:

– Qual o prato do dia?

– Filé de urso com molho de framboesas.

– Me vê um.

– Ka¢trlvá pra acompanhar?

– Não.

Sei lá o que é isso. Veio o prato. Comi tudo, horroroso. Pedi a conta, chegou.

– Achei que viria com um brinde do seu país.

– Não, senhor, só a conta.

– Mas nem uma bandeirinha?

– Não, senhor.

– Ok, vou abrir o jogo com você. Sou um colecionador. A única bandeira que ainda me falta é a da Pomerânia. Soube desse restaurante e viajei afoito do Brasil para a Alemanha especificamente para adquiri-la aqui. Seria uma grande gentileza da casa me dar de lembrança (ou vender, eu pago, não me importo) uma bandeirinha da Pomerânia.

– Sinto muito senhor, até gostaria de ajudá-lo. Mas a bandeira da Pomerânia não pode ser comercializada, distribuída, nem sequer divulgada. -– e agravando subitamente a voz: – É uma questão religiosa.

– Mas pensei que fosse uma proibição política. E além disso, a Pomerânia sempre foi católica, não conheço nenhuma lei do catolicismo que proíba bandeiras.

– A menos que essa bandeira mostre Jesus e Maria praticando sexo oral.

Ele me mostrou o grafismo no lado superior esquerdo da bandeira. O que podia ser genericamente tomado por um brasão de armas qualquer adquiria novo sentido, as auréolas, tudo. Os símbolos nacionais da Pomerânia, formulados em 1937 às pressas para seguir as exigências necessárias ao reconhecimento do país, foram confiados a Boudek¢va Mouleynko, um pintor dadaísta nativo, que na ânsia por ultrajar e forçar os limites do que é e do que não é arte, adicionou o desenho sacrílego às cores pátrias. Ele passou despercebido, com todos tomando-o por alguma referência ao antigo reino medieval. Mas antes de morrer, Mouleynko confessou em suas memórias o verdadeiro significado do símbolo. A revelação coincidiu com a rebelião nacionalista pomerânia, e Stalin aproveitou o pretexto para implementar uma proibição total, sob pena de morte ao infrator.

O garçom me disse ainda que a bandeira exibida na frente da loja era ligeiramente modificada. Retirando-se o traço reto que representava os genitais de Jesus, a figura podia ser interpretada somente como Maria de joelhos, beijando a mão de Cristo, o que não tinha valor para um colecionador. Perguntei-lhe se havia restado alguma original, escapada da censura soviética, e ele respondeu que apenas duas restaram: uma estava no cofre de um milionário americano, ao mesmo tempo moralista e entusiasta de bandeiras, que a havia adquirido para assegurar-se de que nunca seria mostrada novamente ao mundo. A outra, numa comunidade sobrevivente ao pogrom de Vladivostok, que vivia entre as matas de taiga russas em semi-isolamento, de onde seu pai havia saído para se estabelecer na Alemanha, vinte anos atrás.

Segundo ele, essa comunidade de cerca de quarenta sobreviventes e seus descendentes havia implementado uma nova nação pomerânia ali, numa região grande apenas o suficiente para provê-los de caça e água, cujas fronteiras foram estipuladas por acidentes geográficos de importância irrisória: ao sul do tronco de eucalipto caído, ao norte da caverna onde mora uma família de ursos, a leste da linha de trem que liga Vladivostok ao sul da Sibéria, num ponto distante exatamente duzentos quilômetros de cada lado das estações mais próximas, e a oeste de um tanque de guerra destruído por uma mina durante a guerra da Coréia. Dentro desse pequeno território, eram preservadas as tradições culturais da terra natal. Mesmo que o resto do mundo ignorasse completamente a nação escondida, suspendiam num mastro todo dia pela manhã a bandeira pornográfica, pela honra da Pomerânia.

Terminou o relato chorando. Fomos beber num bar ali perto, o cara é gente fina. E eu desisti de vez da minha coleção.

sexta-feira, novembro 04, 2005

A morte do terceiro inquilino

Tem gente que gosta de História e gente que não gosta. Entre os que gostam, a maioria faz ressalvas à porção decoreba da matéria. Mas tem também quem se interessa menos pelas causas e conseqüências da descoberta do Brasil, do que pela hora e minuto exatos em que o Monte Pascoal foi avistado, ou o marujo específico que teve o privilégio de ser o primeiro a ver terra enquanto Cabral tomava vinho em sua cabine, ou o índio que notou antes de todo mundo as caravelas chegando (e em contrapartida descobriu Portugal). Remando contra os professores de história modernos, que pedem para os alunos esquecerem nomes e datas, essa gente é atraída pela luz própria do fato isolado, seus dados concretos, números, particularidades e coincidências, desprezando todos os séculos de tédio em que nada acontece. Nada do que vem antes e depois nos diz respeito, queremos só os pontos de virada, quem, quando e onde, e refletimos essa postura em nossas próprias vidas.

Vida, período exato entre o nascimento e a morte? Ou entre a inseminação e a decomposição? No primeiro caso, está valendo só quando corta o cordão umbilical ou já quando a primeira nesga de bebê entra em contato com a atmosfera? Em que hospital, que banco de táxi, que signo zodiacal regeu o trabalho de parto? E ao morrer, quanto tempo levou pra alguém perceber, foi um atropelamento ou precisou de um mês e meio até os vizinhos sentirem o mau cheiro? E não só início e fim, a vida é cheia de marcos históricos entre suas extremidades. Sendo que a de cada um só diz respeito a si mesmo, então podemos estipulá-los segundo critérios próprios e contruir uma rica e tumultuada história para o nosso umbigo.

Demarquei, por exemplo, o dia de domingo último, 30 de outubro do ano em questão, entre seis e oito da noite pelo fuso de Berlim, como o momento da minha transição para a maturidade. Nesse dia, eu e Ricardo executamos o outro inquilino aqui de casa.

No meu apartamento moram três pessoas, já devo ter mencionado o terceiro, embora não costume falar muito. Ele mora informalmente, a proprietária nunca ficou sabendo. Clandestino seria a melhor palavra, mas ele não gosta. Tudo bem que o cara é calmo e se contenta em dormir na cozinha, mas mesmo estando aqui desde abril, não se ofereceu sequer uma vez pra rachar o aluguel, não divide o dinheiro das compras, não lava a louça, não cozinha. Também não reclama e não incomoda, é verdade, às vezes até me esqueço dele, mas resolvemos acabar com essa folga, resolvemos devorá-lo:

Senhoras e senhores, apresento-lhes o frango. Frango, te apresento a panela; hora de morrê, fio duma égua, hora de ser tirado do freezer onde tu ficou sete meses congelado, hora de ser esgarçado e untado com manteiga, envolvido em papel alumínio e levado ao forno por uma hora, sendo a cada quinze minutos regado com o próprio líquido de cozimento. Hora de, já morto, ser servido e ter suas articulações quebradas com a tesoura de destrinchar, separado em peito, asa, coxa e sobrecoxa, e ser comido com a voracidade das cavernas de quem não almoçou e está jantando às oito da noite, com a mão, com a faca, com o pé, com a cara lambuzada; frango, você já era.

Tem gente que deixa passar a vida inteira e não faz um frango assado. Esses nunca tiveram a sensação de cozinhar de verdade, como pra um almoço de família, sem a culpa constante de achar que se está só arrumando um jeito de não passar fome. Podem dirigir uma multinacional, ter quinze filhos e cabelos brancos. Mas se nunca fizeram um frango, pra mim não são adultos.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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