terça-feira, agosto 30, 2005

Ler é ruim

Pare de ler. É o que deu pra assimilar da intensa experiencia cultural que foi a viagem de onibus de onde escrevi o último post, e de onde escrevo este agora, embora talvez acabem eles passados a limpo em dias diferentes. Durante as oito horas de trajeto, reli um livro e revi um filme, ambos completamente diferentes no enredo, na forma e no contexto em que foram engendrados, mas identicos no ritmo e na inteligencia.

"Se um viajante numa noite de inverno" é um livro sobre vários livros, lidos em sequencia por um leitor, e portanto em sua essencia um livro múltiplo, de várias histórias. "Antes do por-do-sol" é centrado numa única e insignificante história, de um casal resolvendo suas picuinhas passadas falando sem parar. Um é a obra prima de um escritor italiano falecido, o outro, o filme mais recente de um diretor "cult" americano. Mas com todas as suas divergencias, ambos se comunicam da mesma forma, através do excesso, da overdose de detalhes e pensamentos inteligentes; um minuto de película ou uma página de capítulo dao margem a horas de polemica numa escola de filosofia ou numa mesa de bar.

Mas um livro é feito de várias páginas, e um filme, de vários minutos, e como toda informacao em excesso se torna desinformacao, é isso que faz de ambos tao bons de repetir: tentar se apoderar de todo os seus universos, todos os diálogos e questionamentos, e ser capaz de digeri-los sem ter sobras pra dar a descarga.

Tarefa homérica, eu sei, mas nessa segunda tentativa, entre tudo que mais uma vez perdi, processei ao menos um ponto de contato temático entre ambos: ler é ruim para as idéias. No filme, a personagem principal diz que foi ao Leste Europeu comunista e só lá comecou a pensar mais claramente, livre que estava de dirigir a atencao para sons, propagandas e reclames capitalistas. No livro, o personagem Irnério conseguiu desaprender a ler, observando as palavras com tanta intensidade que elas voltam ao sentido analfabeto de imagens.

Estranho como producoes cheias de informacao em dado momento preguem a desinformacao, mas seguindo o conselho, recomendo: nao vejam "Antes do por-do-sol", nao leiam "Se um viajante numa noite de inverno", e nao cometam principalmente o erro de travarem contato com os dois na mesma tarde. E se até agora voces nao se deixaram convencer pelo argumento, obrigo-os, ao menos, a parar d eler esse post.

Agora.

sábado, agosto 27, 2005

CISV - os mortos ressuscitam

Demorou. No sentido literal da palavra, significando longa espera, embora a faceta giriática também possa (no sentido de possibilidade, e nao de permissao, porque tudo que advier dessa viagem de onibus agora está meio nebuloso) ser usada mais adiante. Mas digo que demorou porque foram quatro meses procurando uma pista, até que meu pai me veio com o telefone da monitora de uma delegacao do CISV que nos recebeu, eu e mais nove criancas entre 13 e 14 anos, na cidade de Odense e seus arredores, no remoto ano de 1996. A dona desse número nao tinha mais o contato que eu queria, mas resgatou da poeira do sótao o telefone dos pais de uma menina dessa mesma delegacao. Para os quais liguei, os quais nao puderam me informar nada além do telefone atual da filha, que por sua vez me forneceu finalmente o número que eu queria, que remonta à distante ilha de Funen, ao vilarejo de Orbaek, com ó cortado e ae junto, mais especificamente a uma residencia familiar tradicional onde o filho do meio já nao mora mais. Mas daí foi fácil perguntar o telefone atual dele, e depois de acertos e desacertos, estou nesse onibus a caminho de Arhus, com bolinha em cima do a, cidade universitária dinamarquesa onde mora o Niels, amigo que conheci há dez anos e me hospedou por um mes em sua casa, assim como outros nove dinamarqueses hospedaram nove brasileiros, e foram também hospedados no ano seguinte, por um mes na nossa.

Durante esse período, convivíamos meio como irmaos, e assim nos chamávamos. Chamávamos também os pais recíprocos de "pais", e embora por pudor sempre enfatizando o significado postico das aspas, é melhor ser chamado de "pai" com aspas do que de Sr. Larsen ou outro título respeitoso qualquer.

Essa amizade, superficialmente um exemplo de sucesso de integracao cultural, um dinamarques, futuro músico filho de um caminhoneiro de cidade pequena, e um brasileiro, futuro designer filho de engenheiros de grande metrópole, nao tem nada de natural, arbitrada que foi pelos chefoes do CISV, assim como sao centenas de outras, em dezenas de intercambios binacionais que acontecem simultaneamente ao redor do mundo. O CISV, essa ong suprapartidária que tem como objetivo, pasme, a paz mundial através da formacao de líderes com senso de justica e livres de preconceito, nao me tornou mais justo, menos preconceituoso ou mais líder que ninguém, mas me possibilitou ter amigos do outro lado do oceano numa idade em que voce ainda se esconde na barra da saia da sua mae.

A questao é se um contato assim, que a princípio deu certo, mas sempre sob a sombra da falta de espontaneidade em que foi concebido, sobreviveria ao oceano e ao passar dos anos. A evidencia ululante é de que nao, seja por falta de vontade ou de Orkut, durou só uma troca esporádica de emails nos dois anos seguintes.

E no entanto, dez anos depois estou aqui nesse onibus, a caminho de Arhus, a tres horas do destino. Dez anos impoes mudancas. Pela foto que eu vi da família agora, os pais do Niels estao grisalhos, o irmao mais velho encarecou, e a irma mais nova, que aos oito anos era bonitinha (no sentido crianca do termo, nao no cafajeste) embarangou (agora sim). Já o próprio Niels, este a princípio só perdeu a cara de moleque de treze anos. Mas as mudancas maiores sao de ordem comportamental, e essas nao se pode julgar por uma imagem, a menos quando se deixam evidenciar na postura e na atitude perante a máquina fotográfica.

Tendo ele permanecido o sujeito bem-humorado e descomplicado que era, essa viagem pode fazer refluir algumas águas passadas da infancia. Mas se virou ladrao, drogado, esquizofrenico, doido varrido, ou se simplesmente os dez anos forem barreira suficiente para a total falta de assunto, aí terá sido só um intervalo de alguns dias numa amizade que nunca era pra ter sido.

Faltam duas horas.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Banho no Albergue

Avalie a situação. Não é, você pensa, a única alternativa. Você poderia manter-se sujo se quisesse, provavelmente ninguém no estabelecimento que você escolheu para se hospedar (opção sua, nenhuma obrigação ou pressão externa) notaria.

Mas você reluta. Só hoje você percorreu sabe-se lá quantos quilômetros, mais do que seus pés gostariam de ter andado. De maneira nenhuma você o fez por esporte, pelo gosto do exercício físico, mas tão somente pela relutância em gastar dinheiro com o transporte público da cidade. E agora não só eles, os seus pés, como também todo o seu corpo exaurido exige a recompensa pelos serviços prestados à sua curiosidade turística e cultural. Você abre a porta.

O banheiro é um cubo oco forrado por dentro de azulejos brancos que, quando inteiros, só ressaltam a negligência dos proprietários. O espaço de locomoção é exíguo, e para se despir você se decide por sentar-se no vaso sanitário para ter mais área de manobra. Ou talvez, opostamente, o ambiente que se descortina ao seu redor seja um amplo toalete comunitário, com chuveiros, pias e privadas enfileiradas, e nesse caso você dispõe de vasta liberdade, mas ainda assim a usa com parcimônia.

Você pendura a toalha na porta do box, posto que há um box e uma porta por onde ingressar nele, e envolve a roupa limpa na usada, de modo que a última proteja a primeira dos respingos que certamente cairão durante o banho. Você retira da necessaire os artigos que lhe serão importantes quando a água começar a correr. A caixa do sabonete você acha só usando seu sentido táti, mas onde está o xampu? Você procura, reflete sobre onde poderia tê-lo deixado, pensa em voltar ao quarto para pegá-lo. Mas não se aflija. Assim como você esqueceu de trazê-lo, há sempre alguém que não se lembrou de levá-lo de volta, e você vê, bem ao lado dos seus pés, o xampu que usará hoje. Sim, talvez não seja como o seu, do tipo dois em um, ou anticaspa, ou para cabelos quebradiços, ou qualquer que sejam as exigências que seu sensível couro cabeludo requer, mas é só um dia e mal não lhe fará. Desfeita a preocupação, você em seguida calça os chinelos que evitarão que qualquer tipo de micróbio adormecido nas poças residuais se aproveite para se instalar entre seus dedos, provocando frieiras, micoses e outras doenças que você não terá prazer em conhecer.

E então você liga a água. Ela vem numa ducha lancinante que provoca um susto frio em seus ombros, ao qual você responde girando quatro vezes a torneira de água quente e se refugiando num canto seco do exíguo box de que dispõe. Com o pé, vai controlando a temperatura da água, esperando pela sua gradativa subida. O ponto ideal chega, você se coloca de novo debaixo do chuveiro e começa a sentir a água morna limpar-lhe os poros, agradavelmente deslizando o suor ressecado pelo ralo. Mas um instante. A água que antes lhe molhava os ombros agora vaporiza assim que os atinge, eliminando a sujeira não mais por escorrimento mas por incineração. Você rapidamente destorce a torneira de água quente e reabre a fria, mais uma vez escorando-se na parede do box enquanto a nova mistura não surte efeito. A medição mais cautelosa com o pé lhe diz que a água atingiu agora a temperatura ideal.

Você sabe que a fórmula da ducha perfeita não leva em conta só o balanço correto entre a abertura das duas torneiras, mas também o quanto é liberado por ambas no total. Às vezes a temperatura agradável é atingida ao custo de pouca água despejada pelo chuveiro, e é exatamente esse o seu problema agora. Ela cai em volume tão pequeno que se atrai juntando-se num fio grosso que explode na sua cabeça e costas sem distribuir-se pelo corpo. Mas você sabe que não adianta abrir mais um pouco a torneira, pois a temperatura da água não segue uma lógica proporcional, e levando-se em conta que só em casa você tem perfeito controle sobre as artimanhas do chuveiro, e que alguém já bate na porta avisando que outras pessoas também pagaram pelo direito de utilizar o espaço, você resolve deixar as restrições de lado e começa a se ensaboar. Abrindo mão do asco e da frescura, se purifica para um novo dia de turismo das cavernas.

quarta-feira, agosto 17, 2005

Budapeste

Que Budapeste era na verdade duas cidades, Buda e Peste, divididas pelo Danubio, todo mundo sabia. O que poucos tem conhecimento e que Buda tambem era duas cidades, Bu e Da, com o rio N no meio.

Péssima. Mais uma vez:

Diz a historia ainda que uma cidade vizinha chamada Cabra queria se fundir com Da e Peste, excluindo Bu, mas em vista do nome final, a uniao foi rejeitada.

Terrível. Chovem tomates, o público vaia, a gongo apita, a claque estala.

Melhor entao nem contar que Bu, desesperada frente a possibilidade de isolamento, tinha elaborado um plano secreto para se unir a Bônica, mas bom, falei que nao ia contar. Perdao pelos trocadalhos, não era pra matá-los de desgosto, mas pra passar uma rasteira em Budapeste, essa cidade provinciana que nao se sabe de onde tirou tanta pompa.

Pequeno assentamento de uma provincia menor do imperio Romano, posteriormente burgo do reino hungaro, destrocado em sequencia pelos mongois, turcos, austriacos, nazistas e comunistas, atualmente capital de um pais de minima relevancia internacional, como pode uma cidade ser tao infundadamente prepotente? Voce chega esperando uma Praga, uma Cracovia, que assumem sua insignificancia nas pequenas ruas medievais, mas encontra uma Paris capenga, de bulevares engarrafados e predios neoclassicos que vao se acinzentando com a poluicao.

Falta a Budapeste um passado que endosse o seu exibicionismo, mas essa ausencia vira as vezes o seu maior atrativo. Que nem o Ze Buscape que ganha na loto mas continua desprezado pelo circulo dos esnobes, a cidade ainda nao tem a manha do que e "in" e do que e "out" e oferece ao turista sem querer algumas das atracoes mais loucas. Como o "Labirinto" assim nomeada gruta debaixo do castelo que te da um lampiao e um boa sorte e te manda pra dentro do breu total da caverna a pretexto de buscar seu eu interior. Ou a riquissima catedral, que exibe como reliquia numa redoma de ouro a mao decepada de seu santo padroeiro. Nem imagino os fieis fazendo peregrinacao.

Parto agora pra uma cidade ainda mais cheia de si, mas dessa vez com razoes de sobra. Viena, capital habsburga do nariz em pe, a cidade que nao peida. Qualidades tem aos montes, vamos ver se vai usa-las pro bem ou pro mal.

domingo, agosto 14, 2005

Um Ato Patriótico

Ontem comprei dois livros sobre Budapeste e Viena, pra onde parto segunda-feira agora. Livros de viagem aqui sao bem baratos, deu oito pratas cada um com mapa e fotos coloridas, e olha que eu nem escolhi os mais em conta.

Já mencionei que nao sinto saudade do Brasil? Eu sei, nao tem nada a ver com o assunto de cima, mas tem. Porque mesmo sem sentir saudade, fiquei vendo na outra prateleira os livros que falam sobre o Rio, e mesmo sem querer voltar, nao pude evitar aquele nó na garganta.

Vocês sabem como é livro de turismo. Relanceei uns oito, sempre o mesmo papinho: "Rio, a cidade sexy da luxúria e da festa", "tomar caipirinha vendo o pôr-do-sol no Arpoador", e segue nisso. Clichê, clichê, clichê, mas ponha-se no lugar de um turista alemao. Cultura típica na Europa sao pessoas dancando aos pulinhos em roda, segurando a ponta da saia com os dedos e festejando a colheita da uva. De um país pro outro muda só o formato do chapéu. Compare isso com a riqueza de um ritual de candomblé, uma roda de samba, um desfile de carnaval. Sao estereótipos, eu sei, mas nao serao os estereótipos simplesmente as pontas mais visíveis de um estilo de vida próprio, independente e radicalmente diferente em suas metas do estilo euro-americano?

Se nós, classe média e vizinhos de cima, insistimos em taxar as figuras do carioca malandro ou da mulata sensual como retratos incompletos que escondem um país de violência e desigualdade, se enxergamos no tal jeitinho brasileiro só a enorme ineficiência que ele gera, talvez seja porque os estejamos julgando por padroes alheios à cultura que os produz. Talvez nós, classe média e vizinhos de cima, nao facamos parte, afinal, da cultura brasileira. O povo, se nao está feliz com o que tem, ao menos sabe que nao poderia viver em lugar onde o futebol nao se confundisse com religiao, sem os onibus a caminho da praia cheios de gente pendurada nas janelas, sem as filas do INSS em que a Dona Maria arma o barraco quando vê alguém furando.

Nao estou aqui pra louvar a pobreza, eu nao gosto de nada disso. Mas como disse, sou parte dessa classe média que se espelha na Europa, lê bons livros e escuta boa música, e portanto quer distância de um estilo de vida que nao preze a eficiência, a organizacao e o progresso. O estilo brasileiro é lindamente divergente, mas admiro-o mais ou menos como os ativistas do Greenpeace admiram a Amazônia. A natureza feliz lá, e eles felizes em seus escritórios em Londres.

Tirando a miséria abjeta e a violência galopante, o Brasil devia ser conservado do jeito que é, antes que porventura se entregue ao que já nao assimilou da cultura dominante. Do lixo nas ruas à tarde de sábado na praia, dos flanelinhas à corrupcao na política, da indignacao com a corrupcao à cervejinha do guarda, dos cânticos de guerra das torcidas à pátria unida comemorando um gol da final da copa. É assim que o país é, e é o que o faz ser único e celebrado no mundo. Qualquer ingrediente a menos, removido a título de consertá-lo, só faz desandar a mistura.

Mas por nao gostar do sabor do bolo final, me sinto, com meus ideais europeus, meio predador, meio espiao contribuindo involuntariamente com a ruína da própria nacao. É por isso que esse auto-exílio na Alemanha nao deixa de ser um ato de patriotismo

quinta-feira, agosto 11, 2005

O Plano Falhou

Mae, detesto te dizer isso, mas o tiro saiu pela culatra. O plano de vir pra Alemanha dar uma geral na vassoura desgrenhada que seu filho virou depois de cinco meses sem sua supervisao foi pelo ralo.

Do pescoco pra baixo, meu físico de etíope conquistado à custa de muita inanicao realmente é parte do passado. Gracas às barras de chocolate e às metades finais dos pratos de macarrao que você espertamente nunca terminava, a ONU já nao joga engradados de comida pelo aviao na varanda aqui de casa.

Do pescoco pra cima, a história é outra. A cabeleira que na Alemanha ainda nao viu barbeiro continua intacta, apesar da insistência, da galhofa e daquela tentativa secreta de passar a márquina zero enquanto eu estava dormindo. Admito que a falta de tesoura agora se deve a mais do que a simples recusa em dar 40 pratas pra um turco com maos de kebab quando posso pagar 5 no Rio. Aos poucos, virou questao de personalidade. Nao que eu tenha virado um cabeludo heavy metal, nao houve tempo e nem eu quero isso. Mas há um ponto em que o cabelo assume relevos autônomos, deixando de acompanhar a curva da cabeca e livrando-a do seu formato padronizado. A cabeca deixa de ser mero envoltório autocolante obediente ao crânio, e comeca a explorar formas nunca antes navegadas, seguindo os caprichos capilares. Todo dia me assombro em frente ao espelho com as novas identidades que posso assumir dependendo do jeito como o travesseiro me abraca. Mesmo tentando pôr certa ordem no caos, as tentativas de padronizacao sao infrutíferas e o pente desiste.

Seu filho sai às ruas cada dia com um formato de cabeca diferente, e com isso, diferentes aerodinâmicas para o fluxo de idéias. Quem sabe isso nao dá uma chacoalhada na criatividade e acaba ajudando na profissao.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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