quinta-feira, agosto 31, 2006

Apartamento

Inventei uma teoria: quanto maior a escala de um objeto, menos ele pode ser tocado e dividido com outras pessoas. Uma rua é de todos, qualquer um pode andar nela, tocá-la com as solas dos sapatos. Mas um pixel é intocável. Pixels não tem sequer uma forma concreta, nem seu próprio dono pode encostar nele.

Já telas são tocáveis, mas geralmente só por acidente. Porque ninguém quer correr o risco de deixar uma digital empastelando pra sempre por causa de um mosquito mala. Deus, que se quiser também pode tocar num pixel, encosta em telas sem deixar digitais, mas além dele, a única pessoa que eu perdoaria por encostar na minha sou eu mesmo.

Computadores são tocáveis. Alguns são públicos, são manipulados por centenas de crianças carentes de escolas estaduais que dividem um único; mas no meu, só mexo quase que eu. Umas poucas outras pessoas garimparam ao longo da vida o direito de usá-lo brevemente em emergências, mas ainda assim sob minha supervisão.

Meu quarto é muito mais tocável que meu computador. Meus amigos todos praticamente já o fizeram, meus familiares, e se ainda não estiveram aqui estão desde já convidados. Qualquer um com que haja uma mínima intimidade tem liberdade pra circular no meu quarto, a menos que sejam duas horas da manhã, ou sete, ou eu queira escutar música e ler um livro do Calvin sozinho.

As regras que valem para o quarto valeriam também para a escrivaninha, diria alguém, que está um degrau abaixo na escala mas oferece as mesmas liberdades e restrições. Furo na teoria? Não. Eu posso impedir alguém de tocar na minha escrivaninha sem ofendê-lo, se estiver por exemplo montando um quebra-cabeças de mil e quinhentas peças, com as bordas já todas encaixadas e o resto separado em montinhos de cores iguais. Eu posso colocar um recado dizendo pra empregada, não mexa, pra que ela não arrume a minha bagunça meticulosamente organizada, posso deixar esse recado fossilizar por meses, as peças de quebra-cabeça embaralhando com os fios do computador e os cds pra transformar em mp3. Mas não posso impedí-la de entrar no meu quarto por tanto tempo, pois mesmo que eu me dispusesse a passar aspirador e pano úmido, estaria impedindo-a de ir até a varanda (ou, dependendo de onde ela estivesse quando me baixasse o exu fascista, acabaria presa na varanda pelo resto da vida).

Meu apartamento é o último reduto em que posso cersear a passagem dos outros. Depois dele, adeus. No prédio, por mais que se estranhe um mendigo bêbado na portaria, não posso expulsá-lo: pode ser, ainda que improvável, convidado de um vizinho, um parente mal de vida, um irmão gêmeo recém-descoberto. Na rua, o mendigo deixa de ser exceção, vira regra, e outros tipos podem causar estranhamento, sem que tenha o menor cabimento enxotá-los de um espaço público: um corcunda, o Romário e o homem-elefante podem despertar pena, furor ou asco, mas nos resta respeitar seus direitos de ir e vir.

Aqui dentro posso barrá-los. Ainda que eu seja só uma voz entre quatro pra decidir, e já tenha tido que engolir muita visita chata, especialmente os pedreiros que fazem obra nos andares de cima e têm que vir sempre no fim do dia pra limpar os restos de terra e caco de azulejo que deixam cair na nossa área de serviço. Mas se eu cismar, posso engolir a chave, e impedí-los de entrar no meu apartamento. Mesmo que esse pronome meu, do apartamento, esteja aí em sentido figurado, pois não sou eu quem paga o IPTU e a conta de luz. Quem paga é a minha mãe, e pensando bem, como o apartamento é dela e a mãe é minha, acaba que o apartamento é meu por uma questão de vassalagem.

terça-feira, agosto 22, 2006

Quarto

Tenho algo terrível a confessar sobre meu quarto. Pouco antes de nos mudarmos para esse apartamento, há quase nove anos, eu e minha mãe fomos numa loja de arquitetura, das melhores de Copacabana, e encomendamos o projeto dos móveis. Voltamos um mês depois, quando a arquiteta nos apresentou a proposta. Era um projeto muito bem feito, e apesar de eu chegar à conclusão alguns anos mais tarde de que não gostava da escrivaninha, ainda me sinto muito à vontade com a minha cama extra-comprida e minha estante de relíquias. A estante de relíquias é uma parte muito peculiar do meu quarto, formada por três prateleiras de canto arredondado que se projetam quase um metro e meio pra fora da parede, dividindo a cama da escrivaninha. Nela exponho alguns objetos acumulados ao longo da vida, como minha coleção de bandeiras, a vasta gama de puzzles e joguinhos manuais, e curiosidades como uma mandíbula de tubarão, garrafas de vodcas tcheca e letã, e garfos lutando caratê.

A arquiteta que desenhou a estante, e todo o resto do quarto, era uma moça muito bonita. Era loira, não tingida, e tinha uma cara magra e um nariz longo e pontudo. Foi bem educada também. Não reparou que eu tinha vindo à loja vestindo um moletom verde surrado que cabia melhor na gaveta de pijama, e trazido um bloco de notas com uma caneta bic presa na espiral. Sentamos eu e minha mãe em torno da mesa de vidro. A arquiteta abriu o projeto e começou a explicar. Ela foi muito simpática, mas logo se via que por baixo de muitas camadas de sorriso, não gostava do lugar em que trabalhava, nem de nós. E gostava menos ainda do projeto que fizera, culpada pelo pouco trabalho intelectual que dispensara para agradar a pessoas médias, como nós, que não tinham o gosto apurado que ela lapidou durante a formação. Durante a faculdade, tinha feito projetos fantásticos, prédios públicos, um museu de arte contemporânea que lembrava Santiago Calatrava. E agora, depois de formada, estava projetando quartos convencionais para a classe média em que ficava proibida de mostrar seu inconformismo. Podendo trabalhar com fibra de vidro e bambu, ela não ousava além de madeira e fórmica, e sabia que seria mais do que suficiente para iluminar as cabeças turvas de gente como nós, como qualquer cliente da loja. Depois pensava no elitismo intelectual dessas idéias, mas o próprio pensamento já a jogava de novo no egocentrismo.

Era uma espiral crescente, que ela camuflava bem com um sorriso. Mas ficava difícil explicar a proposta e domar a decepção ao mesmo tempo, e praticamente impossível notar que, por baixo da mesa, eu e minha mãe copiávamos o projeto com todas as medidas, de frente, de perfil, raios, alturas, espessuras, tudo. Uma semana depois, demos a um marceneiro que fez os móveis por menos da metade do preço.

domingo, agosto 20, 2006

O que voce faria?

Mudando um pouco de assunto, mas por um motivo muito grave, e logo em seguida voltaremos aos posts escalares: ontem vi um filme sensacional que foi quase completamente negligenciado pelos exibidores, relegado a passar em uma só sala na Zona Sul. Chama-se 'O que você faria', mais um caso de título idiota em português para o original em espanhol 'El metodo Grönholm", e trata de uma seleção de executivos numa empresa que segue por caminhos pouco ortodoxos. É irretocável até a parte do meio pro final, quando o roteiro toma rumos de que eu discordo, ainda que só pontualmente. Pra quem gosta desses filmes em que não há mais do que sete pessoas numa sala, e tudo que elas fazem é brigar e conversar durante duas horas numa escalada de tensão, é um prato cheio. E não é filme cabeça, pelo contrário. O melhor que vi esse ano, e candidato possível ao top ten.

Achei que valia a pena o alerta, já que esse será daqueles que semana que vem, por falta de público (sábado à noite e a sessão não tinha nem metade da capacidade do cinema) mudará do Estação Botafogo para o Paissandu, e vai terminar a carreira daqui a vinte dias incógnito no Laura Alvim. Se é que esse blog tem qualquer poder de influência sobre seus minguados leitores, saiam de casa e vejam.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Escrivaninha

Senti-me tentado a começar este quarto post da série sobre espaços escalares falando do meu quarto, para aproveitar a coincidência de nomes, mas me rendi à ausência de relação de posse com o tema do último post, que é o que tenho buscado, além do aumento de tamanho. Um pixel pertence a uma tela, uma tela pertence a um computador, mas um computador não pertence a um quarto, embora tampouco pertença a uma escrivaninha. Um computador pertence a uma mesa, larga, de vidro com pés de metal, mas no meu quarto não tem nenhuma, só essa escrivaninha, um arremedo de móvel, um remendo multiuso no exíguo espaço entre a cama e a parede oposta.

Fosse somente pela escrivaninha, acredito que não seria capaz de escrever e fazer design a contento. Se o mundo tivesse parado antes do computador, de preferência em 1963, antes da ditadura e depois da copa, estaria alijado das minhas duas principais atividades. Tendo eu que blogar num bloco pautado e colocar cópias do texto manuscrito em garrafas ou dobrá-las em gaivotas, terminaria com um sério problema de artrose no pulso, porque à minha direita o móvel tem uma elevação de cerca de quatro centímetros da qual teria que desviar ao escrever à mão. Não poderia abrir o suficiente o braço direito, espremido, e só de pensar já prevejo as dores futuras do pulso deslocado.

Para fazer design, a escrivaninha é ainda menos útil. São cerca de quarenta centímetros de profundidade, menos que o tamanho de uma folha A3 na vertical. Nem quero imaginar como seria colar letraset em um cartaz 60x90 cm amarfanhado nessa ranhetice. Por isso comprei uma mesa de desenho, dobrável, que agora complementa o espaço de trabalho ao lado da escrivaninha, já que, ao contrário da maioria dos meus colegas, ainda não abandonei o desenho à mão que nos fazia tão populares no colégio.

Minha escrivaninha é provavelmente feita de MDF, ou um pinho barato. É revestida com folha de cedro envernizado e fórmica azul escura no tampo. Eu decorei a lateral com adesivos dos quais hoje me arrependo, ilustrando lugares que nunca fui: Hollywood, Las Vegas, Bélgica, Bruges, outro de Las Vegas, Los Angeles, Wet’n Wild, que eu já conheci, e um prateado do Vasco, que eu conheço muito bem e não me arrependo. Logo embaixo do tampo há uma prateleira de correr, onde antes tinha um teclado, e agora tem só um mouse, em cima de um mousepad do metrô de Londres. No tampo da escrivaninha fica o laptop, com a fiarada que se ejeta pra fora e o benjamim no qual ela em sua maioria desemboca. Há também, temporariamente, vários CDs do Barão Vermelho (com Cazuza) e dos Titãs, que estou transformando em mp3 para passar em seguida para um futuro iPod, que substituirá meu aparelho de som quebrado. Há um bloco aberto de papel chamequinho, a capa protetora do Macintosh, alguns papéis aleatórios, entre eles um mapa de Århus que ganhei de presente dos dois dinamarqueses que estiveram aqui em casa, e por último, o saco plástico que cobre a impressora, emprestada temporariamente para a minha irmã. Nos vãos onde antes ficavam o estabilizador e o gabinete do meu antigo computador, coloquei alguns livros de design e estojos de material gráfico, como pastel seco, guache, aquarela, marcadores e réguas. Eu teria problemas para descrever o conteúdo do armarinho ao lado, que se parece com um liquidificador de tudo que já foi dito antes.

Às vezes fico sonhando com uma mesa de mogno. Larga, bojuda, encostada na parede só pela lateral, que soltasse cheiro de madeira e de dicionários velhos, e desse de frente para uma estante também de mogno, dessas que cobrem a parede inteira, do teto ao chão, cheia de livros falsos talvez, não importa, vinte volumes de encadernação oca da Encyclopedia Britannica de 1876, entre outros, e uma cópia de um mapa-múndi do século XVII. Ao meu alcance, na escrivaninha, haveria uma pena de ganso mergulhada em nanquim chinês e um mata-borrão, puro enfeite para formar o quadro com um computador negro de tela de dezenove polegadas, sem fio e com sistema de som surround até para os barulhinhos de clique do Windows (melhor, do Mac). Acho que num ambiente assim tão castanho qualquer um pode produzir em minutos uma novela de setecentas páginas ambientada na Rússia czarista, embora eu provavelmente eu não tivesse mais estímulo para fazer experimentos com tipografia desconstruída.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Computador

Já cantei mais de uma vez aqui neste espaço as maravilhas de um Macintosh, chegou a hora de enumerar suas mazelas. Enumerar na realidade não é bem o verbo, pois há apenas uma a se mencionar. Um preciosismo, é verdade, mas sem solução aparente, um detalhe incômodo como um corte de folha de papel na ponta do dedo, nem tanto por obra do Macintosh em si, esse oásis de ordem e beleza, mas do mundo ilógico que o circunda.

Há um emaranhado de fios e cabos que corre solto sobre a minha mesa. É o ecossistema que mantém o laptop vivo, um intestino de digestão de bytes escorrendo à sua volta. Contei-os todos, para melhor pormenorizar a desordem. Achei, do lado esquerdo:

- um fio branco, que veio junto com o computador, e o conecta a uma caixinha branca.
- um outro fio branco, mas não tanto, ligando a impressora ao computador.
- um cabo cinza liga a impressora ao benjamim.
- um terceiro fio branco, mais grosso, sai da caixinha branca e se conecta ao benjamim.

E do lado direito, o mais congestionado:

- um cabo preto, que liga o computador à caixinha da velox.
- um outro cabo preto conecta o computador a um hub multiplicador de saídas USB, das quais duas estão ocupadas.
- da primeira segue um fio preto até o mouse.
- da segunda sai mais um fio preto conectado à câmera fotográfica, que não tem motivo para continuar ligada ao laptop depois de duas semanas do seu último uso. Mas continua.

Além deles, colaboram para o pleno funcionamento deste laptop os seguintes cabos e fios, todos do lado direito:

- um fio bicolor que liga a caixa da Velox ao benjamim
- um cabo cinza que conecta a caixa da Velox ao hub que duplica o sinal da banda larga.
- dois fios, um vinho, que se bifurca em dois cinzas depois de passar por uma caixinha preta, e um azul, grosso, que levam, através de um buraco na parede, o sinal duplicado da velox em direção ao quarto da minha irmã.
- um cabo que liga o duplicador de sinal ao benjamim.
- um fio que conecta o benjamim ao ponto de energia.

Esses fios sempre estiveram aqui desde o primeiro computador, mas ficavam escondidos, porque minha escrivaninha (mais sobre esse tópico no próximo post), foi projetada com um vão para colocar o gabinete. Mas com a adoção do laptop, os fios ganharam liberdade e começaram a traçar caminhos tão lombriguentos que costumo esculpir neles montanhas russas para matar o tempo.

Moldo guinadas e loopings, mas mesmo que não me desse ao trabalho, o passageiro das montanhas russas de fios que partem do meu Macintosh já se depararia com um cenário desafiador. São quedas vertiginosas da caixa da Velox em cima da prateleira até seus receptores no andar debaixo, são hubs que multiplicam os trajetos e os tornam imprevisíveis, são diversos pontos de contato entre os trilhos, que se encostam, se enroscam e se prostituem, e exigem cálculos muito complexos de engenharia de tráfego para evitar colisão de vagões.

Visualizando os fios dessa forma, talvez com algumas árvores de maquete de arquitetura e caminhos de tijolos amarelos por onde os turistas pudessem comer algodão-doce, o emaranhado fica mais bonito de se ver. Com cores circenses, música alegre, fontes animadas que cospem água em coreografia, ficaria melhor ainda. Sem isso, sem ouvir o estrondo dos vagões passando e das namoradas gritando de medo nas descidas, essa fiarada não tem graça nenhuma.

quinta-feira, agosto 10, 2006

Tela

Quando era pequeno, acreditava que pra fazer um jogo como Super Mario Bros 3 (então o meu preferido, parâmetro pra qualquer assunto relacionado a videogame), era preciso alguém que desenhasse, num computador ou num papel, não importa, todas as possibilidades de tela existentes. O trabalho do videogame seria encadeá-las de acordo com os comandos apertados no joystick.

O jogo começa. Se eu avanço até encontrar o primeiro monstro, essa é uma possibilidade de tela previamente desenhada pelo criador do videogame. Na verdade, são várias, cada fotograma é uma possibilidade diferente. Se eu pulo no monstro, o atinjo em cheio ou de raspão, se me deixo matar, se recuo, se lhe arremesso um casco de tartaruga, todas são seqüências de telas plausíveis que devem ser incluídas no jogo. É uma teoria completamente absurda. Mesmo aos sete anos e sem ter ouvido falar de programação de software, eu tinha consciência de sua inviabilidade, e por isso estava sempre testando-a.

A melhor forma de pôr à prova uma teoria dessas era colocar o personagem numa situação improvável, que não tivesse sido prevista pelo desenhista das telas. Se o videogame travasse, era porque eu tinha razão. Uma das minhas táticas mais recorrentes era carregar cascos de tartarugas por fases inteiras, até áreas onde provavelmente nenhuma tartaruga jamais teria acesso não fosse o trabalho braçal do personagem travestido de cientista. Eu arremessava cascos de tartaruga do céu. Trazia para dentro dos canos. Levava até o último canto da tela. Mas os desenhistas sempre, sempre previam as hipóteses mais descabeladas.

Passei a acreditar que não houvesse um artista, nem mesmo um batalhão de chineses, responsável pelo desenho de cada tela de Super Mario. Que talvez, o videogame fosse compondo telas viáveis de acordo com o rumo que o jogo toma. Comecei a tomar atitudes imprevisíveis para dificultar seu trabalho. Cometi suicídios. Caí no buraco depois de já ter pulado por cima. Voltei ao início da fase, após tê-la quase completado. O jogo não travou, não piscou, assimilou minhas manobras como se fossem de naturalidade ululante.

Pausei a partida. Fui almoçar, brinquei de banco imobiliário, jantei, dormi, fui à escola. Coloquei dois hotéis em todos os meus terrenos, jantei e dormi de novo, e despausei o jogo no fim de semana seguinte. Agora havia fantasmas na tela; o jogo, ou os desenhistas chineses, jamais poderiam prever que eu pudesse jogar Super Mario, arremessar cascos de tartarugas das nuvens e me atirar em buracos na companhia de um contorno de cano do lado esquerdo da tela e as letras de pause borradas bem no centro. Previram. Todos os meus movimentos eram diagnosticados pelo cérebro eletrônico. Mas será que teriam em seu arquivo de imagens telas resultantes de dois fantasmas seguidos? Voltei ao videogame na semana seguinte, as letras de pause mais fortes na tela, uma planta carnívora cuspidora de fogo de cabeça pra baixo no canto direito e um clone do Mario, fixo, pulando num ponto de interrogação. O jogo continuava prevendo todos os meus movimentos.

Repeti a operação por outras três semanas. O Phantom System esquentou demais, a base do cartucho derreteu dentro do console. Comecei a precisar usar óculos. Sempre que eu apertava start dava choque. E minha mãe teve que comprar outra televisão.

terça-feira, agosto 08, 2006

Pixel

(série de textos inspirada no livro Espécies do Espaço, de Georges Perec)

Claro que é estúpido tomar o pixel como ponto de partida destes posts seqüenciais. Estamos falando de um objeto que em sua essência

1- é meramente estipulado, pura medida, como o metro, o quilo ou o litro, mas com uma clara desvantagem em relação a esses, que pode ser resumida no ponto número

2- tem tamanho variável, podendo, de acordo com o meio, caber em razão de setenta e dois a trezentos em cada polegada, um espectro vasto e particularmente incômodo quando se quer tratar de escalas.

3- não tem forma definida, abrindo vasta gama de possibilidades de representação. O pixel é a informação referente ao menor pedaço de uma imagem, e pode se transmutar em ponto, linha ou quadrado de cor, de acordo com o meio em que é visualizado.

Assim mesmo, o pixel é o ponto de partida obrigatório, posto que ao se olhar para uma tela, é inapelavelmente ele a sua menor parte, pelo menos enquanto não quisermos nos estender ao imenso (eis aí um trocadilho que valerá à pena) campo da microscopia.

* * *

Eu não sei em que resolução você está lendo este post. A maioria gosta que hajam oitocentos pixels na medida mais comprida da tela, e seiscentos na mais curta. Com tal escassez (sim, pois em se tratando de pixel, quatrocentos e oitenta mil deles são uma sovinice ranzinza), mal se tem lugar para driblar os ícones e menus gigantescos da tela. Quem gosta e se sente confortável nessa resolução mingüada não sabe que duas regências são admitidas ao verbo escrever quando o objeto é a palavra pixel.

Uma é escrever sobre, eu escrevo sobre o pixel, como vim fazendo, acidentadamente, do início do post até aqui. A outra é escrever, eu escrevo um pixel, como farei em seguida, somente para aqueles que gostam de altas densidades por polegada.

.

Acima, um exemplar de pixel escrito.

terça-feira, agosto 01, 2006

Cultura da violencia

Quando fui pra Dinamarca ano passado, aproveitando a estada de um ano em Berlim, o Niels, velho amigo escandinavo que à época mereceu este post, disse que queria vir ao Brasil uma segunda vez, que tinha se amarrado no mês que passara aqui em 1997. Tipo de coisa que se diz pra agradar, apelando ao patriotismo e à memória comum, ainda mais quando não se tem muito assunto depois de oito anos de silêncio.

Só que não era conversa fiada. Ele veio mesmo, carregou a namorada, e estão desde quarta-feira aqui em casa, onde ficam até sábado, pra depois saírem em excursão pro Pantanal e Foz do Iguaçu. Eu nunca duvidei. Todo mundo sabe que dinamarquês não desperdiça saliva. Pra quem, como qualquer brasileiro, vive cercado de referências européias, é uma diferença previsível.

Mas pra eles a tarefa inversa é mais complicada. Sendo o nosso principal embaixador na Europa um chinelo de dedo, fica muito mais difícil, mesmo depois de vir pra cá, enxergar além da sambista pelada, do futebol-arte e da violência galopante. Essa última chega a agir de forma coerciva, forçando o visitante a não sair do ovo que a infraestrutura de uma cidade turística produz.

Por isso fiz o possível pra não contaminar o Niels e a Line com a nossa paranóia. Quero mais que peguem mesmo um ônibus pra ir pra Ipanema, sofrer um pouco de sacolejo e cacofonia. Que entrem numa feira, que comprem um refresco mais salgado um real, que não se limitem só ao Cristo e o Pão de Açúcar, que vejam a cidade funcionando entre essas ilhas estáticas. Claro que mostrei tudo que devia preocupá-los, os pivetes debaixo da marquise, o trânsito, as favelas, a polícia, e ensinei algumas precauções. Exige muito tato apontar os perigos potenciais, praticamente um por metro quadrado, sem envolvê-los numa fobia patológica. Passar dez dias circulando de táxi com ar-condicionado no Rio é transformar um investimento enorme em meia dúzia de cartões-postais. Num país com tanto a oferecer quanto o Brasil, não vale a pena.

Então estou me desdobrando pra rodar com eles por tudo que é canto, são dez dias que tenho pra fazê-los ligar os pontos e ver que país que se forma juntando todos os cacos que vão conhecer. Já comemos rabada numa travessa do Arco do Teles, mas também rodízio numa churrascaria cara, e bobó de camarão, e os pratos de arroz com feijão que se come todo dia aqui em casa. Já os fiz provar guaraná e cachaça, caipirinha de maracujá e suco de caju, mate e água de coco também. Fomos numa festa junina com show de forró, num boteco bunda-de-fora com um cara tocando violãozinho, no Claro Hall, na arte contemporânea do Paço Imperial e no artesanato da Feira de São Cristóvão. Estou ficando até meio obsessivo. Me pego lamentando as pequenas coisas que eles perdem por falta de referência ou defasagem no idioma, como a explicação dada pela Marisa Monte pra origem da música Meu Canário, que ajuda a entender a história do samba no Rio. Eu pescando tudo e eles, aquela cara de bunda.

São fundamentais essas sutilezas coloquiais. A própria formulação das frases ajuda a entender o caráter do povo. Não deve haver nenhuma outra língua com tanta descontinuidade, esses anacolutos que se bota no meio da sentença e a levam pra qualquer canto, imprevisível, sem nenhum planejamento. Sábado de noite, depois do assalto em Santa Teresa, eles ficaram com medo de sair de noite e acabamos vendo o documentário Vinícius, do Miguel Faria Jr.. Vinícius de Moraes e Chico Buarque só falam assim, e não há legenda que dê conta de um idioma tão soluçado. Com tanta emenda que os tradutores fazem pra dar estrutura à frase, acaba-se perdendo o significado, e as palavras de dois dos maiores gênios brasileiros ficam vazias.

Ah, é. Tem isso. Fomos assaltados. Um cara botou uma garrafa quebrada no pescoço do Niels e tomou-lhe a mochila.

De repente qualquer retórica sobre violência corre pro ralo. Toda a riqueza cultural perde a relevância. O exotismo vira ameaça. É triste, triste vê-los saindo do táxi e correr apavorados, olhando pra todos os cantos, em direção ao próximo porto seguro.

Paíszinho de merda.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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