quinta-feira, outubro 26, 2006

Estado

Relação das minhas presença e ausência nos 92 municípios do estado do Rio de Janeiro

Angra dos Reis, Aperibe: nunca.

Araruama: uma vez. Acampamento do Cisv.

Areal: nunca.

Armação dos Búzios: uma vez. Acampamento do Cisv.

Arraial do Cabo, Barra do Piraí, Barra Mansa, Belford Roxo, Bom Jardim, Bom Jesus de Itabapoana: nunca.

Cabo Frio: duas vezes. Uma, viagem com meu pai, oito anos. A segunda, feriado na casa de um amigo.

Cachoeiras de Macacu, Cambuci: nunca.

Campos dos Goytacazes: duas vezes. A primeira, outra viagem com meu pai, escala pra Bahia. Rio Paraíba do Sul e a casa onde morou minha avó. A segunda, uma parada para o almoço. Primeiro dia de viagem para a Chapada Diamantina.

Cantagalo: uma vez. Hotel-fazenda.

Carapebus, Cardoso Moreira, Carmo, Casimiro de Abreu, Comendador Levy Gasparian, Conceição de Macabu, Cordeiro, Duas Barras: nunca.

Duque de Caxias: uma vez. Acampamento do Cisv. O segundo, e provavelmente o melhor. Embora não me lembre mais por que foi tão bom. Participei de algumas atividades pela primeira vez, sei disso. Como a refeição solidária. Todos em duplas, um é cego, o outro não tem braço, o cego tem que guiar as garfadas do aleijado até conseguir acertar sua boca, depois inverte. E outros. Me lembro que tinha um moleque endiabrado no quarto, era um quarto pra nove pessoas, o apelido dele era anjinho. Porque tinha cabelo louro cacheado, apesar de ser um peste. No último dia o prendemos no banheiro, junto com o vaso entupido com um cocô gigantesco e o pote de creme pra pele que vinha com azeitonas, de uma das meninas, que quase com certeza foi ele que jogou na privada. Ele ficou meia hora lá dentro, o cheiro era horroroso, gritando de pavor. Precisou virem os monitores para libertá-lo. Todos vibravam. Ninguém gostava do anjinho. Um cara do meu quarto, que ganhou o apelido de porpeta, que é almôndega em italiano, porque ele era gordo, queria fazê-lo sentar num carrinho de rolimã com um prego, e empurrá-lo de cima da ladeira. A ladeira era por onde os carros chegavam ao acampamento. No fim dela tinha um espinheiro.

Engenheiro Paulo de Frontin: uma vez. Hotel-fazenda.

Guapimirim, Iguaba Grande: nunca.

Itaboraí: uma vez. Não sei se quero falar sobre isso. Ano 2001, eu completei dezoito. Tinha pavor de serviço militar. Minha mãe arrumou um pistolão com um tio distante meu que era coronel reformado. Mas tinha que ir até Itaboraí, só funcionava se eu me alistasse lá. Fui. De carona com ele. Levei uns papéis que ele tinha pedido, documentos que seriam requisitados no posto. Ele tinha um sítio, passamos lá primeiro. Fiquei vendo as galinhas, ele, resolvendo as coisas dele. Uma hora. Na saída do sítio, ele me ofereceu, dirige aí. Eu disse, não posso, não fiz dezoito ainda, ele disse, e daí, eu disse, melhor não, e não dirigi. Era um jipe. Fomos no posto de recrutamento. A sargenta olhou os papéis, falou, você não pode se alistar aqui, você mora no Rio. Tem que ser na zona correspondente. Não teve mais conversa, meu tio disse, você trouxe muito papel, eu tinha trazido só o que ele havia pedido, estava um calor do cão, Itaboraí é uma cidade feia, na volta ainda paramos numa loja de beira de estrada, parecia um desmanche de carros, meu tio ficou negociando com um cara, desconfio que ele está metido em alguma tramóia. Minha dispensa do exército foi a mais demorada e atribulada de que se tem notícia no hemisfério sul. Passei três anos indo seguidamente no quartel da Gávea, depois no de Triagem, depois no CPOR, sempre antes das seis da manhã. Tive que ficar pelado três vezes, duas para soprar o braço e ver se o saco incha, uma doença que deve ser muito importante para os milicos, porque tem a prova e a contraprova, a última porque algum babaca perdeu um estojo em Triagem e os sargentos resolveram revistar todo mundo até achar o culpado. No final, o grupo que ficou rolando todo esse tempo na mão do exército, uns seis ou sete, acabamos amigos. Solidarizados na desgraça.

Itaguaí, Italva, Itaocara, Itaperuna: nunca.

Itatiaia: uma vez. Para subir o pico das Agulhas Negras e o maciço das Prateleiras (só chegamos no alto do segundo).

Japeri, Laje do Muriaé, Macaé, Macuco, Magé, Mangaratiba: nunca.

Maricá: duas vezes. A primeira, para mergulhar na praia de Itaipuaçu. A segunda, um casamento.

Mendes, Mesquita: nunca.

Miguel Pereira: quatro vezes. Uma, acampamento do Cisv. As outras três, hotel-fazenda.

Miracema, Natividade, Nilópolis: nunca.

Niterói: muitas vezes. A maioria, fim de semana na casa de praia, em Piratininga. Outras tantas, festas e churrascos no condomínio de um amigo, em Camboinhas. Dois aniversários em Icaraí. Outra, para escalar a Pedra do Elefante. Uma excursão de escola para a fortaleza de Santa Cruz. Há muito tempo atrás.

Nova Friburgo: entre vinte e trinta vezes. Todas para visitar a família do meu padrasto. Que vem de lá.

Nova Iguaçu, Paracambi: nunca.

Paraíba do Sul: uma vez. Acampamento do Cisv. Cisv é uma organização internacional. Eles tentam, através de atividades e do convívio em grupo, despertar o senso de justiça, solidariedade e liderança nos jovens. Para que cresçam e coonduzam seus países à paz. Ainda não deu certo.

Paraty: três vezes. Uma, em viagem com meu pai. Quentura infernal, três horas de sol. O calçamento de pedra reflete o calor, duplica o abafamento, eu passei mal, fomos embora. Outra, buscando refúgio de Itatiaia. Depois da falta de pique para subir o pico das Agulhas Negras, eu e dois amigos passamos o resto do feriado em Paraty. Eu pisei num ouriço. Paraty é linda. A última foi na Flip. Comprei dos livros, um eu já li. Se chama Extremamente Alto & Incrivelmente Perto, é sobre um garoto à procura de indícios sobre a morte do pai nas torres gêmeas. Não é piegas. O garoto é muito esperto. Ele e o pai eram muito ligados, procuravam erros no New York Times juntos, e faziam caça ao tesouro no Central Park. Ele acha que descobrindo como exatamente o pai morreu, vai parar de imaginar cenas terríveis a respeito. Na busca, ele conhece várias pessoas estranhas, incluindo todas as pessoas em Nova York com sobrenome Black, e uma velha que há quarenta anos não desce do topo do Empire State. Muito bom livro. Um dos dois que comprei. O outro estou lendo agora.

Paty do Alferes: nunca.

Petrópolis: um sem número de vezes. Uma em acampamento do Cisv. Não sei porque eles se chamam acampamentos. Ninguém nunca dormiu na grama em eventos organizados pelo Cisv. Não tem lógica. Eu detesto barracas de camping. Outra, um churrasco de turma em Araras. Todas as demais, na casa dos meus avós, em Itaipava.

Pinheiral, Piraí, Porciúncula, Porto Real, Quatis, Queimados, Quissamã: nunca.

Resende: duas vezes. Uma, hotel-fazenda. Outra, em Visconde de Mauá, só para o almoço.

Rio Bonito: Três vezes. Duas, hotel-fazenda. Uma para passar o fim de semana num sítio, com outras treze crianças (eu tinha doze anos) e dois responsáveis. Todos do Cisv, mas não era um acampamento.

Rio Claro, Rio das Flores, Rio das Ostras: nunca.

Rio de Janeiro: e Paquetá? Faz parte do Rio ou de outro município? Uma vez fui a Paquetá. Não sei onde colocar.

Santa Maria Madalena, Santo Antônio de Pádua, São Fidélis, São Francisco de Itabapoana: nunca.

São Gonçalo: três vezes. Duas para fazer compras no Carrefour, com minha mãe. Uma para assistir um filme no São Gonçalo Shopping. Não lembro que filme. Também com minha mãe.

São João da Barra, São João de Meriti, São José de Ubá, São José do Vale do Rio Preto, São Pedro da Aldeia, São Sebastião do Alto, Sapucaia, Saquarema, Seropédica, Silva Jardim, Sumidouro, Tanguá: nunca.

Teresópolis: duas vezes. Uma, um churrasco. Primeiro ano da faculdade. Outra, para subir a Pedra do Sino. Passar a noite num abrigo lá em cima. Muito frio. Esqueci de levar coberta. Me cobri com o colchão, deitei no estrado da cama. Não funcionou.

Trajano de Morais, Três Rios, Valença, Varre-Sai, Vassouras, Volta Redonda: nunca.

terça-feira, outubro 17, 2006

Cidade


E se os pedestres andassem por cima dos prédios? Ver os tetos de Copacabana todos lisinhos no mesmo patamar me fez pensar que aquilo bem poderia ser um chão elevado a cinqüenta metros de altura em vez da terra de ninguém que é. A circulação a pé no nível do mar devia ser abolida, deixando as ruas avançarem de vez sobre as calçadas.

Imagine a cidade sem calçadas. Seria a solução para a embrulhada do trânsito, que fluiria melhor com mais pistas, e por tabela aumenta o espaço dos pedestres, que agora tem quadras inteiras de espaço urbanizado para andar e uma vista bonita de doer.

Claro que nem todos os bairros do Rio são como Copacabana, nos outros os prédios variam de altura o tempo todo, mas eu acho que os percursos acidentados dariam mais personalidade ao cenário. A paisagem ganha escadas, pontes, ladeiras, túneis, pessoas passando por cima e por baixo, uma dimensão a mais para fazer surpresas a cada virada de esquina. É a chance de a cidade mudar de cara completamente sem precisar ser bombardeada.

Na cobertura, gente saudável passeando sem amarras. No térreo, a auto-estrada voando baixo. Um isolado do outro. Tem uma metáfora escondida aí. O pedestre que, para pegar o carro, tem que descer andares, degraus, patamares, cair de nível, lamber o chão, comer poeira, que vê a luz do sol se acinzentando conforme o elevador baixa, acaba que desperta para a desimportância que o automóvel merece. Ninguém seria forçado a andar por cima dos prédios, mas aposto que iriam todos preferir. Os únicos que não poderiam subir seriam as pessoas que levam seus cachorros para fazer cocô e os skatistas. Com tão poucos fregueses, as lojas se mudariam também. Cada prédio poderia alugar 30% de seu terraço para o comércio, 50% ficaria livre para a circulação, e 20% seria ocupado pelo verde. Todas as lojas poderiam se mudar, com exceção, evidentemente, das lojas de carro, autopeças e dos mecânicos.

Alguns outros conceitos precisariam ser alterados:

- As portarias agora são acessadas pelo terraço. Ficam no penúltimo andar, dividindo espaço com o estoque das lojas e as raízes das plantas.

- Pontes suspensas por cima das ruas ligariam prédios de alturas semelhantes. Nelas se permitiria a atividade de artistas de rua e ambulantes.

- Prédios muito mais altos que seus vizinhos seriam obrigados a ocupar seus terraços com parques públicos acessados por elevadores internos.

- Regra de comportamento vital: cuspir no cocoruto dos carecas lá embaixo vira crime inafiançável.

- Todos os andares térreos de todos os edifícios seriam abertos e usados como garagens públicas gratuitas, pontos de ônibus e táxi, e talvez ciclovias.

Na verdade, não sei bem ainda o que fazer com as bicicletas. Os ciclistas também merecem a vista e o espaço do alto dos edifícios, mas o desnível entre os terraços atrapalha demais a locomoção. Mais prejudicados do que eles, só os deficientes físicos. Claro que toda escada poderia vir junto a uma rampa ou um ascensor para cadeira de rodas, mas haja paciência para topar com um desses a cada quinze metros.

Outro problema seria o aumento dos roubos a moradia. Para o ladrão fica fácil descer dois andares escalando a parede, dar um chute na janela e entrar num apartamento. Mas se fosse pego no flagra, ele poderia tentar escapar por cima dos prédios e a perseguição daria um filme de ação excelente. Mais problemas: pessoas com vertigem. Elas também ficariam prejudicadas. E não sei se a poluição lá em cima é mais tóxica, ou se o ar é mais rarefeito. Ou se daria pra integrar as antenas de TV a cabo na paisagem, ou se os pombos e as gaivotas não se revoltariam com a ocupação do deserto que antes era todo deles e usariam das armas que dispõem para expulsar os visitantes (o que me leva a pensar num aumento do número de lavanderias). Mas mesmo que houvesse vários outros problemas que não soubemos ainda prever, raios, chuva ácida, suicídios, não tem tanta importância, porque a proposta também não pode ser aplicada em toda a cidade. Em alguns lugares, é desejável que as pessoas caminhem no chão, como o Aterro, o calçadão da praia, a Lagoa e a própria praia. Há bairros menos densos, sem prédios tão colados uns nos outros, há bairros onde andar por cima das casas seria estranho, como Santa Teresa, e na Barra os caminhos seriam feitos mais de pontes que de terraços. Nosso escopo acaba limitado a setores da Zona Sul, ao Centro e à Tijuca, mas mesmo com tantos contratempos e um alcance tão pequeno, a idéia me cativou o suficiente para desenhar uma possível cena de pedestres andando no topo dos edifícios.

A grande lição que tirei desse projeto é que tá na hora de voltar a treinar o desenho.

terça-feira, outubro 10, 2006

Bairro

Eu nunca o vi levantando da cadeira de balanço, ele, o ancião da família, e nem nunca tive coragem de perguntar se aquelas pernas magras e manchadas conseguiriam ainda sustentar o seu peso. Acho que nenhum dos descendentes jamais ousou indagá-lo a respeito, e por isso todos nós o chamamos de “ancião”, não pelo fato de ele nunca levantar da cadeira, mas porque ninguém tem certeza de que grau de parentesco tem com ele. Em qualquer reunião de família, o ancião está sempre presente, no mesmo lugar, na mesma cadeira, com sua velhice imutável, que sobrevive à deterioração da nossa juventude, integrando a decoração da sala como um móvel, mas um móvel ao qual se deve pedir a bênção, como fazemos eu, meu pai, minha avó, e as gerações anteriores fariam, se ainda estivessem vivas.

– Primeiro este prédio, depois a rua, depois o bairro, depois o mundo – era a frase que precedia a história que ele contava nos encontros familiares, sobre a inauguração do edifício Almeida Rego, o primeiro de Copacabana, na rua Dias da Rocha, e a posterior fertilidade da família, que fundada aquela base, se espalhou e multiplicou até perfazer a totalidade dos trezentos mil habitantes do bairro.

– É claro que eu estava fazendo troça quando disse aquilo – continuava – mas também não tinha idéia do poder de atração que esse lugar teria por mim. Nós os enfrentamos, crianças. Enfrentamos e vencemos. Montamos barricadas, fomos armados para as ruas, e não deixamos que invadissem o nosso bairro. Vocês sabem que Copacabana foi o único bairro que conseguiu resistir à vacinação forçada do Oswaldo Cruz? – e olhava para o tio Sérgio, que é pesquisador da fundação hoje. – Cada médico e cada soldado que tentava entrar, pou, tomava um tiro assim que botava o pé na Bulhões de Carvalho. Com a nossa família era assim. Nós nadamos dois quilômetros em mar aberto pra salvar a santa daquele cargueiro boliviano que naufragou, e é por isso que o nosso bairro tem esse nome hoje. Por causa da imagem da Nossa Senhora boliviana que nós recuperamos na nossa praia. E criamos o desenho do nosso calçadão, que ganhou fama mundial, e vejo alguns de vocês mais jovens dizendo que o desenho não é original, porque o teatro do Amazonas, mas que besteira! Se quiserem lhes mostro os esboços no meu caderno de contabilidade, e as fotografias da calçada em frente ao Almeida Rego, antes daquela bagunça do Rodrigues Alves.

Ainda criança, eu voltava dessas reuniões fascinado, sem acreditar que em nossa família pudesse haver tantas histórias de heroísmo, e que todo morador de Copacabana fosse um parente distante meu, descendente do ancião. Perguntava ao meu pai se era verdade mesmo o que ele contava, mas meu pai nunca respondia, só embaralhava o meu cabelo e dizia que já estava na hora de ir pra casa da minha mãe, o que não me dava muita segurança.

Quando se passa muito tempo sem pensar num assunto e ele volta de repente à cabeça, você percebe o absurdo que é achar que num espaço de cinco, seis gerações – que idade podia ter o ancião? – uma família gere trezentos mil descendentes, todos concentrados num só bairro, e impedindo a entrada de desconhecidos. Fiquei completamente descrente do ancião, e só depois, muitos anos mais tarde, percebi que podia haver um fundo de verdade nessa história.

Afinal, minha família paterna inteira mora em Copacabana, tirando o tio Sérgio, e eu entendo que ele se sinta mal nas reuniões. São primos, tios, avós, tios-avós, bisavós, todos residindo no mesmo bairro. Pode não ser uma prova, mas é um indício. Um indício do tempo em que o ancião caminhava na rua, a cada dois transeuntes, um era aparentado, o que o fez supor que os outros, anônimos, eram filhos e cônjuges recentes de seus familiares, aos quais ele não fora apresentado ou não se lembrava.

E só num bairro formado por uma mesma família poderia nascer uma sociedade de opostos extremos, como gêmeos idênticos que fazem o possível para se diferenciar, porque se não tiverem atitudes divergentes sua memória ficará sempre ligada ao irmão. Os membros da nossa família, em sua busca pela individualidade, formaram um bairro de prostitutas e aposentados, milionários e favelados, travestis e os cachorros de madame. Mesmo geograficamente, Copacabana se comporta como uma família brigona, dividida entre a praia e a montanha, a orla e a confusão do interior, e no meio dessa confusão, alguns dos cantos mais sossegados da cidade. E não falo só do bairro Peixoto não. Perto da Cardeal Arcoverde há ruas tranqüilíssimas, de paralelepípedo, que sobem a montanha como se estivessem perdidas na serra dos Órgãos. E tem uma rua secreta no final da República do Peru, uma fronteira da cidade com a mata Atlântica. Copacabana tem um morro também, bem no meio das principais avenidas, mas que ninguém vê, porque ele se deixou habilidosamente envolver pelos prédios, usando o próprio caos urbano para preservar seus passarinhos. Do topo desse morro que se vislumbra a grande família que Copacabana é. Todos os edifícios aqui, por mais diferentes que sejam suas fachadas, por mais bizarros que sejam seus moradores, têm a mesma altura. É uma coincidência sem precedentes, que não se vê em Botafogo, na Tijuca, nem em nenhum outro lugar. Qualquer bairro visto de cima é um mosaico acidentado de terraços a diferentes alturas, com ou sem telhado, com ou sem apartamento de cobertura, e estes, com ou sem piscina, com ou sem plantas, algumas secas, outras verdes, outras floridas. Têm piso de granito ou de cimento, ou tipo deque de madeira, ou são um estacionamento, se estiverem no alto de um shopping center, ou um heliporto, se for uma sede de multinacional.

Mas Copacabana, ao contrário, é toda igual. Os topos idênticos dos prédios são traços da mesma origem hereditária, que resiste às tentativas de diferenciação. Vista de cima, Copacabana vira uma planície monocromática, feita à imagem e semelhança do edifício Almeida Rego.

domingo, outubro 01, 2006

Rua

O que a sua rua tem a lhe oferecer? Pense num mundo hipotético em que só se pudesse usufruir dos serviços disponíveis na rua onde você mora. Em que situação você estaria? Seria essa pessoa bem-sucedida e culta que é hoje, que lê o Desembolog toda semana, ou seria um indigente?

Há uma escola na sua rua? Até que nível de educação ela te permite chegar? Há um correio, se quiser mandar uma carta? E banco, se precisar pagar uma conta? Como ficam aqueles pequenos luxos, aquele jornal fresco comprado na banca da esquina (há uma banca na sua esquina?) pra acompanhar a xícara de café com leite de domingo; continuará existindo ou tem que ser cortado da rotina?

Pra mim o prejuízo foi enorme ao me mudar de endereço. A rua Pompeu Loureiro teria me dado o ensino médio e fundamental no colégio Barilan. Já uma infância na rua Paula Freitas me manteria analfabeto. O colégio Barilan é uma escola judaica. Se eu acabasse convertido ao judaísmo pela educação recebida na Pompeu Loureiro, seria bom não ficar muito ortodoxo, já que só se vende comida kosher na Paula Freitas. Mas tirando esse pequeno risco, eu teria uma juventude muito mauricinha e saudável na minha rua antiga. Depois de nascer sadio e rosado num hospital privado e de boa reputação como o São Lucas, eu seria levado pra casa e já fraldinha poderia sair para brincar na praça em frente ao corte de Cantagalo, com balanço, escorrega, trepa-trepa e gangorra. Aos três anos, começaria a fazer aulas de natação no Olympico Club, onde ganharia uma medalha de bronze ao atravessar a piscina na terceira posição, nadando com uma prancha de isopor escondida debaixo da barriga.

Na Paula Freitas, eu aprenderia a nadar pegando jacaré na praia, e de lá olharia debochado para os alunos voltando da escola municipal da rua República do Peru, vizinha à minha. Terminar a infância sem saber ler e escrever não teria sido nenhum peso para um jovem sem perspectivas como eu, que desenvolveu uma capacidade extraordinária de inferir o resultado dos jogos do Vasco só pela foto da primeira página do jornal. Na Paula Freitas, eu nasci no balcão da boutique feminina Maiôs Rio de Janeiro, e embrulhado em uma canga de praia cuja conta ficou pendurada por anos. Completados dezoito deles, sem nunca ter nem ingressado no primário, minha família me expulsou de casa.

Durante dezoito verões na Pompeu Loureiro, eu pude usufruir confortavelmente de muitos serviços como:

- um curso Brasas, onde tirei meu diploma de inglês avançado;
- um supermercado Disco, depois Paes Mendonça, depois Pão de Açúcar, onde eram feitas as compras de mês da família;
- a padaria e confeitaria Rosabela, para comprar o café com leite que acompanha o jornal fresco de domingo;
- uma banca de jornal;
- um leiloeiro Roberto Haddad;
- a embaixada da Ucrânia.

Além disso, na minha antiga rua eu tive acesso ao mais completo sistema de saúde, que incluía, além do hospital São Lucas:

- a clínica de saúde Pompeu Loureiro;
- a drogaria Pompeu Loureiro;
- um corpo de bombeiros, pra qualquer emergência.

Na Paula Freitas, depois de posto na rua, eu arranjei um emprego na lavanderia Lav Center, fazendo atendimento no balcão. O trabalho era mal pago, mas os turistas hospedados no Trocadero Othon Hotel e no Royalty Copacabana Hotel eram ricos, e esqueciam coisas nos bolsos das roupas que deixavam comigo, ajudando na remuneração final. Entre os itens furtados ao longo de dezenove meses estão:

- 2.450 reais;
- 975 dólares;
- 858, 25 euros;
- dois relógios, um Swatch e um Casio;
- um pente de marfim;
- uma caneta MontBlanc;
- um iPod.
- pesos argentinos, chilenos, paraguaios, uruguaios, colombianos, venezuelanos, costarriquenhos e mexicanos; dólares canadenses e australianos; libras esterlinas, francos suíços, ienes, forints húngaros, liras turcas, rúpias, rublos e yuans, que somados e convertidos chegam a 3.000 reais. Com exceção do forint húngaro, consegui trocar todo o dinheiro nas lojas da rua, embora a taxas mais desfavoráveis que as praticadas em casas de câmbio regulares.

Alguns clientes voltavam para reclamar, mas eu nunca, nunca devolvia nada. O dono do iPod (não era pelo aparelho, era pelas músicas) pulou o balcão e encontrou-o no meu bolso. Eu disse que não se podia provar que era o dele, mas quando ele ligou, o aparelhinho se iluminou e apareceu na tela: Buenos Días, Gonzalez! Tomei um soco que quebrou meu nariz, e não fosse o dono da lavanderia aparecer, ele talvez tivesse me matado. Fui demitido no fim do dia.

Na Pompeu Loureiro, comprei meu primeiro computador na loja de informática DocMicro, e assim que terminei o ensino médio, entrei para o curso de webdesign do Senac realizar meu sonho de ser um profissional de criação.

Houve alguns problemas relativos à escolha do design como área de trabalho, como a ausência de papelarias na Pompeu Loureiro, o que me exasperara a princípio, até perceber que a porta do almoxarifado do Senac não ficava trancada. Todo mês eu voltava na condição de ex-aluno nostálgico para cumprimentar os professores e, um pouco de cada vez, surrupiava o material. Freqüentava o Senac também para cortar o cabelo com as alunas de estética.

Fosse eu um webdesigner na Paula Freitas, seria cabeludo ou com várias falhas no corte, mas não precisaria me envolver em pequenos furtos de material de escritório. Havia uma papelaria na rua, a Casa da Bíblia, que me acolheu quando meu dinheiro acumulado na lavanderia acabou. Eu passara três meses seguidos almoçando no Galeto Viva Flor e jantando no Golden Cafe, comprando roupas masculinas na Pool e emendando madrugadas no Mud Bug Sports Bar. Não digo que não procurei emprego. Fiz investidas esporádicas em lojas como a Colchões Ortobom, a Drogasmil e a Só Lustres, mas todas recusaram meu pleito ao ver que, aos vinte anos de idade, eu não aprendera mais do que assinar o nome. Acabei me acanhando de tentar uma vaga em outros lugares, com medo de mais negativas. Cheguei a voltar à Sonoleve, mas como cliente. Lá comprei o colchão que estendia na calçada, cansado das caixas de papelão.

A proprietária caridosa da papelaria me notou uma semana depois que as minhas economias acabaram, e, apiedada ao me ver disputando os grãos de milho secos jogados aos pombos, me deixou estender o colchão dentro de sua loja, e me ensinou o ofício de xerocador.

Na Pompeu Loureiro os negócios corriam muito bem. Eu tinha um computador, eu tinha material de escritório roubado, e tinha o conhecimento técnico e artístico. Todas as condições para ser o webdesigner mais promissor da rua. Clientes nunca faltaram, dos já citados hospital São Lucas e clínica Pompeu Loureiro até o hotel Four Plus Copacabana One. E diagramava também a programação de eventos do Olympico Club, aquele onde vinte anos atrás eu trapaceara para tirar o terceiro lugar na natação.

Comecei a enriquecer. Quando a estação de Cantagalo do metrô foi inaugurada, no fim de 2006, fui contratado para projetar a sinalização interna. Eu ampliava cada dia mais a minha área de atuação, já que a competição estava quase extinta, e minha presença no mercado só fazia aumentar. Logo estava atuando em todos os nichos do design, da arquitetura e da propaganda. Websites, marcas, periódicos, embalagens, campanhas publicitárias e projetos arquitetônicos, tudo tinha o meu dedo. Minha pequena empresa caseira logo precisou de mais funcionários, e tive que comprar outros quartos, apartamentos e andares para acomodar toda a gente. Em pouco tempo, eu tinha virado um conglomerado.

O metrô me trouxe clientes de outras ruas, multiplicando minha clientela potencial. Mas fiquei com medo de expandir ainda mais o escritório, para que o funcionamento clandestino da empresa em área residencial não fosse notado pela fiscalização. Por isso quanto mais aumentava a demanda, mais eu a repassava para os funcionários, sem fazer mais contratações nem aumentar-lhes o salário. Com a eliminação dos concorrentes da rua, eu ganhara esse poder de barganha. Aplicava todo o lucro da empresa na bolsa de valores, e em cinco anos me tornei milionário, remunerando mal meus contratados e prestando serviços de baixa qualidade.

Mesmo não tendo recebido educação apropriada na Paula Freitas, eu era igualmente talentoso no campo das artes visuais. Na papelaria, com uma máquina de xerox antiga e sem manutenção, conseguia cópias excelentes, muito parecidas com os originais. Dois clientes voltaram entusiasmados, dizendo que a xerox de suas carteiras de motorista foram suficientes para passar por uma blitz policial, que as tomou por originais. Isso me deu uma idéia.

Muitos dos fregueses da papelaria eram conhecidos da dona, amigos de longa data, evangélicos, e a confiança que depositavam nela foi sem nenhum esforço transferida para mim. Eles me davam suas carteiras, cheias, e pediam que eu xerocasse a identidade e o título de eleitor, enquanto davam uma volta. Comecei a fazer montagens com os documentos, colocando minha foto 3x4 por cima da deles. Em pouco tempo, eu tinha um arsenal de identidades diferentes que jogavam sob os ombros de outros as responsabilidades das compras feitas com seus cartões de crédito brevemente furtados.

Era um esquema burro, que não me servia de nada. Eu tinha a caridade gratuita da proprietária da papelaria, que me garantia comida e abrigo. Além disso, com meu salário de xerocador, podia comprar tudo que as poucas possibilidades da rua me permitiam, de colchões a comida kosher. Eu fazia pelo simples prazer da contravenção, e dada a fragilidade do esquema e a falta de um álibi consistente, não demorou muito pra que me desmascarassem. Fui demitido e expulso da Casa da Bíblia, e escorraçado na calçada pelas minhas vítimas.

Passei a morar na rua, definitivamente.

Essa história não tem outras reviravoltas. Eu morrerei na mendicância daqui a alguns anos na Paula Freitas, assim como terei uma longa vida de empresário bem sucedido na Pompeu Loureiro. Em ambos os casos, graças ao talento para as artes gráficas e ao maucaratismo. Sua rua pode determinar sua sorte, mas não pode mudar sua personalidade.

Profile

Rodrigo Rego

Sou designer, fascinado por bandeiras, jogos de tabuleiro, países distantes, e uma miscelânea de assuntos destilados quase semanalmente neste espaço.

Visite meu site, batizado em votação feita aqui mesmo, Hungry Mind.

rodrego(arroba)gmail.com
+55 21 91102610
Rio de Janeiro

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