Pra se ver como uma coisa puxa a outra, e devagar o que começou com uma gota d’água vira, não uma tempestade, mas sei lá, qualquer coisa, um purê de batata.
Quando eu era pequeno tinha mania de colecionador. Achava coleção uma atividade nobre, um objetivo de vida com muito mais significado que jogar bola e tirar boa nota. Mas em vez de colecionar o que normalmente é colecionável, selos, figurinhas, latas de cerveja, juntava qualquer treco que me parecesse suficientemente bizarro, entre eles:
- bolas de gude
- chapinhas (mesmo sem tomar refrigerante)
- gibis da Mônica
- canudos do McDonalds (só valia do McDonalds, tinha uns cem iguais)
- adesivos na porta do quarto (valia qualquer coisa, nenhum critério)
- pôsteres do Vasco
Mas parecia que eu estava só juntando lixo, nenhuma dessas coleções tinha o apelo de um mural de borboletas, uma estante com garrafas importadas. Querer ser criativo juntando objetos inusitados e ao mesmo tempo que tivessem um mínimo de encanto me consumiu muitos dias de reflexão, até remexer numa gaveta e descobrir um antigo presente da minha vó, que ao voltar de Guarapari me trouxe a bandeira do Brasil e boa parte dos estados. Uma coleção já começada, pouco óbvia e com certo valor agregado.
Virou obsessão. Quen viajasse pra fora já sabia qual era a minha encomenda. Uma vez fui no Pizza Hut com meu pai especialmente pra comer as pizzas típicas do México, Suíça e Coréia do Sul. Horrorosas, mas saí de lá com as três bandeiras da promoção. A coleção foi aumentando. Nunca cheguei nem perto de completá-la, ainda me faltam itens básicos, como Portugal, Egito, Colômbia, mas tive pra lá de um quarto dos países do mundo, um ou outro estado americano, algumas heráldicas inglesas, e noventa por cento dos estados brasileiros.
A coleção e o conhecimento adquirido através dela me rendeu um memorável trabalho de faculdade, analisando graficamente as bandeiras de Antigua & Barbuda e Turcomenistão para concluir que, na improvável hipótese de alguém que tudo soubesse sobre esses dois países mas não conhecesse suas bandeiras, seria fácil, deduzindo pelos elementos de cada uma, dizer de onde eram. Me fez descobrir um site na rede que lista e dá notas para cada bandeira, deixando a brasileira como última colocada entre as nações independentes e a da Gâmbia em primeira (é uma bela bandeira, de fato). E me fez parar ontem na rua ao passar em frente a um restaurante que exibia na frente a bandeira da Pomerânia.
Minha coleção de bandeiras deve estar às traças no Brasil. Já estava antes de eu vir pra cá, várias furadas, traça mesmo, não é metáfora não. Mas ainda corre sangue em suas veias. Ao ver a bandeira da Pomerânia, assim de bandeja, ela voltou à vida, quase ejaculou. A bandeira da Pomerânia é conhecida entre os especialistas como a mais rara de todas, devido às circunstâncias de sua breve existência como nação.
A Pomerânia foi um reino independente por dois séculos no início da idade média. Tirava sua força e influência da exportação de sal, item indispensável na época para a conservação dos alimentos, abundante nas minas da região, que chegavam a cem metros embaixo da terra. Mas a invasão dos hunos, que provocou as derradeiras migrações dos povos bárbaros, estabelecendo por exemplo os francos na Gália, os visigodos na Hispânia e os saxões na Grã-Bretanha, foi fatal para a Pomerânia. O reino não conseguiu se reerguer depois da morte de Átila, o líder huno, e teve seu território reclamado pelos poderes adjacentes, Polônia, Grande Morávia e Hungria. Mas esgotadas as minas de sal, minguou também o interesse dos vizinhos pela região, e a área passou vários séculos em suspenso, sem fronteiras definidas, o pau comendo em volta sem que fosse sequer notada.
O nacionalismo pomerânio só foi renascer em 1848, seguindo uma série de revoltas na Europa, mas de forma tão tímida que não precisou de uma semana para o Império Austro-Húngaro sufocá-lo. A oportunidade seguinte foi no final da Primeira Guerra Mundial, com o desmembramento desse mesmo império, mas, ao contrário da Hungria, Romênia, Iugoslávia e Tchecoslováquia, a Pomerânia só foi reconhecida dezoito anos depois do Tratado de Versalhes. Durou pouco: dois anos depois, Hitler tomava conta do Leste Europeu, e a Pomerânia foi no bolo.
Com a derrota do Terceiro Reich, o país foi dividido entre a Polônia e a União Soviética, e um movimento nacionalista novamente eclodiu. Mas Stalin, no auge de seu poder, não só massacrou toda a população pomerânia, mandando os poucos sobreviventes para o exílio em Vladivostok, como proibiu a reprodução e propagação de símbolos do país, como o brasão, hino, e claro, a bandeira. Com o colapso soviético, não havia mais pomerânios para lutar pela independência de seu país, e assim a região continua dividida entre a Polônia e a atual Ucrânia.
E estava assim, a bandeira dos caras ali, na minha frente, num restaurante especializado em comida pomerânia. Entrei:
– Qual o prato do dia?
– Filé de urso com molho de framboesas.
– Me vê um.
– Ka¢trlvá pra acompanhar?
– Não.
Sei lá o que é isso. Veio o prato. Comi tudo, horroroso. Pedi a conta, chegou.
– Achei que viria com um brinde do seu país.
– Não, senhor, só a conta.
– Mas nem uma bandeirinha?
– Não, senhor.
– Ok, vou abrir o jogo com você. Sou um colecionador. A única bandeira que ainda me falta é a da Pomerânia. Soube desse restaurante e viajei afoito do Brasil para a Alemanha especificamente para adquiri-la aqui. Seria uma grande gentileza da casa me dar de lembrança (ou vender, eu pago, não me importo) uma bandeirinha da Pomerânia.
– Sinto muito senhor, até gostaria de ajudá-lo. Mas a bandeira da Pomerânia não pode ser comercializada, distribuída, nem sequer divulgada. -– e agravando subitamente a voz: – É uma questão religiosa.
– Mas pensei que fosse uma proibição política. E além disso, a Pomerânia sempre foi católica, não conheço nenhuma lei do catolicismo que proíba bandeiras.
– A menos que essa bandeira mostre Jesus e Maria praticando sexo oral.
Ele me mostrou o grafismo no lado superior esquerdo da bandeira. O que podia ser genericamente tomado por um brasão de armas qualquer adquiria novo sentido, as auréolas, tudo. Os símbolos nacionais da Pomerânia, formulados em 1937 às pressas para seguir as exigências necessárias ao reconhecimento do país, foram confiados a Boudek¢va Mouleynko, um pintor dadaísta nativo, que na ânsia por ultrajar e forçar os limites do que é e do que não é arte, adicionou o desenho sacrílego às cores pátrias. Ele passou despercebido, com todos tomando-o por alguma referência ao antigo reino medieval. Mas antes de morrer, Mouleynko confessou em suas memórias o verdadeiro significado do símbolo. A revelação coincidiu com a rebelião nacionalista pomerânia, e Stalin aproveitou o pretexto para implementar uma proibição total, sob pena de morte ao infrator.
O garçom me disse ainda que a bandeira exibida na frente da loja era ligeiramente modificada. Retirando-se o traço reto que representava os genitais de Jesus, a figura podia ser interpretada somente como Maria de joelhos, beijando a mão de Cristo, o que não tinha valor para um colecionador. Perguntei-lhe se havia restado alguma original, escapada da censura soviética, e ele respondeu que apenas duas restaram: uma estava no cofre de um milionário americano, ao mesmo tempo moralista e entusiasta de bandeiras, que a havia adquirido para assegurar-se de que nunca seria mostrada novamente ao mundo. A outra, numa comunidade sobrevivente ao pogrom de Vladivostok, que vivia entre as matas de taiga russas em semi-isolamento, de onde seu pai havia saído para se estabelecer na Alemanha, vinte anos atrás.
Segundo ele, essa comunidade de cerca de quarenta sobreviventes e seus descendentes havia implementado uma nova nação pomerânia ali, numa região grande apenas o suficiente para provê-los de caça e água, cujas fronteiras foram estipuladas por acidentes geográficos de importância irrisória: ao sul do tronco de eucalipto caído, ao norte da caverna onde mora uma família de ursos, a leste da linha de trem que liga Vladivostok ao sul da Sibéria, num ponto distante exatamente duzentos quilômetros de cada lado das estações mais próximas, e a oeste de um tanque de guerra destruído por uma mina durante a guerra da Coréia. Dentro desse pequeno território, eram preservadas as tradições culturais da terra natal. Mesmo que o resto do mundo ignorasse completamente a nação escondida, suspendiam num mastro todo dia pela manhã a bandeira pornográfica, pela honra da Pomerânia.
Terminou o relato chorando. Fomos beber num bar ali perto, o cara é gente fina. E eu desisti de vez da minha coleção.