A arte da compilaçao
É dupla a minha relação com Alta Fidelidade, e é essa duplicidade que me impeliu a estampar por muito tempo esse filmeco ranheta na segunda posição na minha lista dos dez. A dualidade reside na forma como ele me despertou uma compulsão adormecida – a de elaborar top tens dos mais variados assuntos -– e sedimentou outra já latente, ao elevar a gravação de fitas cassete a uma forma de arte.
Adorava gravar fitas cassete quando tinha uns quinze anos. A capacidade de seleção e ordenação de músicas oferece uma oportunidade única de aventura criativa no campo musical praqueles de nós que não conseguiram aprender a tocar violão. E sob a influência de John Cusack, passei a gravar de tudo. De início, trilhas pra churrascos e festas, como todo mundo. Depois, coletâneas pessoais das bandas favoritas. Em seguida, a praga das compilações temáticas. Como aquela que só tinha canções sobre o tempo, de Pink Floyd a Pato Fu. Havia outra em que cada música discursava sobre um dia da semana. Uma delas tinha só as piores músicas dos melhores artistas, chamei-a de “Detest of”. A mais louca talvez fosse a fita dupla em que as canções vinham em ordem alfabética, vinte e seis, uma começando com cada letra. Por falta de espaço e repertório, terminava com “Zed’s dead, baby”, uma faixa da trilha sonora de Pulp Fiction em que a namorada pergunta ao Bruce Willis de quem era aquela motocicleta, e ele responde:
– It’s not a motorcycle. It’s a chopper.
– And whose chopper is this?
– It’s Zed’s.
– Who’s Zed?
– Zed’s dead, baby. Zed’s dead.
E acabava com um ronco de moto, durava vinte segundos, exatamente o que me sobrava na fita antes do fim. Aos poucos meu refinamento na escolha de músicas avançou além da preocupação com o tempo de gravação restante, e descobri que um tema não é suficiente pra dar coesão a uma seleção de músicas. Mas também nunca gostei de juntar músicas sem nenhum pretexto, e o conflito me abriu alguns anos de crise criativa.
Mas com a ajuda do iTunes, voltei à labuta hoje, arquitetando minha obra-prima, que demorou um ano e dois meses da concepção inicial à finalização. O conceito por trás das dezoito músicas selecionadas é: euforia desmedida. Todas elas são essencialmente eufóricas e imagino que a audição da seqüência vá abrindo exponencialmente o sorriso do ouvinte. A pesquisa de repertório se deu de forma incidental: fui apenas fisgando o que dava sopa na frente. Inúmeras músicas foram cogitadas para a compilação, mas o conceito de felicidade levado às últimas conseqüências peneirou quem era só alegrinho. Snookeroo, do Ringo Starr, excelente canção, contagiante, mas só parcialmente eufórica, não entrou. Paródias, como a versão maluco-beleza que um palhaço fez para a depressiva Creep, do Radiohead, foram impiedosamente limadas, assim como as piadas disfarçadas de músicas (Don’t eat the yellow snow, dizia Frank Zappa ao esquimozinho, sobre os cocôs de Husky). Pularam do barco ainda as que dissimulam uma alegria forçada (Wilbury Twist, os Travelling Wilburys mandando todo mundo botar a cueca na cabeça), e as mais difíceis de detectar, as que escondem panos de amargura por trás da aparente joie de vivre (a melancolia engolindo o sol e praia dos Beach Boys).
O resultado são canções de gramática coincidente: abundância na repetição de refrãos, batida acelerada e levada pop. E nenhuma música em português: tenho a impressão que a falta de fluência na língua ajuda a concentrar o foco nas emoções por trás da melodia, e nesse caso, eu queria a histeria absoluta, nada de racionalidade. Eis a lista:
1- I’m in heaven when you smile; Van Morrison
2- Obladi oblada; Beatles
3- My love; Petula Clark
4- Dreaming of you; The Coral
5- Like ice in the sunshine; BossHoss
6- Nur ein wort; Wir Sind Helden
7- Two princes; Spin Doctors
8- Alright; Supergrass
9- I’m Henery VIII, I am; Herman’s Hermits
10- The celtic soul brothers; Dexys Midnight Runners
11- Life is an adventure; Violent Femmes
12- Squeeze box; The Who
13- Sunny; Johnny Winters
14- Veronica; Elvis Costello
15- She’s eletric; Oasis
16- Oh Yoko; John Lennon
17- I’m a cuckoo; Belle & Sebastian
18- J’ai connu de vous; Burghart Klaußner
Baixem, e ouçam de preferência nessa ordem, para acompanhar a mudança gradual no tom das felicidades descritas em cada música, da euforia anárquica no início à alegria robusta, gentil e tranqüila com que se espera que o ouvinte termine o dia.
E aceito sugestões para inclusão no volume dois.