Os dez mais
Aprendi com um filme chamado Alta Fidelidade a relevância de ranquear as próprias preferências. As listas de dez mais, para muitos puro jogo publicitário, me são fundamentais para conhecer meus próprios gostos. Sabendo, por exemplo, quais são as minhas dez bandas preferidas, descubro de que estilo musical gosto mais, ou tabelando o resultado por país de origem ou década, aprendo de onde e de que época são as músicas que mais me agradam. Tudo embasado pela certeza dos números, a estatística é o mapa astral dos céticos.
No filme, um vendedor de LPs listava suas músicas favoritas em diversas categorias, que variavam entre as melhores primeiras faixas de discos de rock até as melhores canções pra se escutar almoçando. Mas ele fazia tudo de supetão, puxando pela memória, inconseqüente. As minhas listas são mais cuidadosas, os critérios de seleção lapidados ao longo dos anos, as justificativas as mais coerentes possíveis. São tão cheias de dedos as listas que achei melhor levar a sério apenas três: melhores músicas, melhores livros, e a mais sólida delas, a de melhores filmes, na qual Alta Fidelidade ocupa orgulhosamente o segundo lugar.
Ou ocupava. Passou uma tempestade nela hoje, momento de crise que tem ficado cada vez mais raro. O frescor do início, quando as mudanças de posição se acumulavam a troco de pouco mais do que o humor de cada dia, acabou sedimentando a poeira e dando lugar a baluartes imunizados pela tradição. Por mais que se tente ser racional, não dá pra evitar o respeito por filmes cuja parceria com a lista é tão longa. Por melhor que seja um novo lançamento, não se pode concedê-lo uma posição nos dez mais descartando A Vida de Brian, por exemplo, que é o filme mais engraçado do mundo. Ou ignorar o êxtase visual de Moulin Rouge, ou rejeitar o próprio Alta Fidelidade, que foi quem deu origem a todo esse pensamento.
Mas a tempestade está forte, vai remexer em território que eu antes evitava, vai cavar um buraco na marra pra entrada do duo Antes do Amanhecer / Antes do Pôr-do-Sol. O segundo eu assisti no cinema, e de novo enquanto viajava de ônibus pra Dinamarca. É a história de um casal que se reencontra, nove anos depois de uma noite única que passaram juntos, e de como a memória dessa noite ainda os assombra e serve de parâmetro para desprezarem todos os seus relacionamentos posteriores. O primeiro eu vi ontem. E revi hoje. Ele mostra o que foi a tal noite da qual os dois não se esquecem, que projetou uma luz de esperança sobre a rotina insossa dos personagens, e que durante nove anos fica acesa atrapalhando o sono, até o filme seguinte apagar.
O segundo é melhor. Não só porque o tema é mais complexo, mas por levar à perfeição a estrutura narrativa de colocar os dois personagens tagarelando sem cortes ininterruptamente. O primeiro têm quebras, silêncios, e algumas distrações externas ao casal, quando a gente quer mais é vê-los verborragindo. Mas filmes sensacionais dispensam análises objetivas, apontar problemas fica com cara de mesquinharia. Não vou me apequenar racionalizando detalhes diante de um filme que é como um marinheiro te dando um nó na garganta, amarrando a corda no gogó e tacando a âncora esôfago abaixo.
Racionalizar, qual é o sentido, ordenar e categorizar gostos feito uma estante de biblioteca? Como se os personagens do filme, ao tentar racionalizar seu amor e decidir não trocar telefones para conservar a tal noite pra sempre numa redoma, não tivessem cometido o grande erro de suas vidas. Por isso, se minha lista de filmes passar mesmo no olho do furacão, ela deixa de existir depois de ver a dupla Antes do Amanhecer / Antes do Pôr-do-Sol. Mas se eu agüentar a barra e sofrer só os efeitos colaterais, a lista muda radicalmente, com a dobradinha assumindo a segunda posição e mandando pro limbo Alta Fidelidade, o filme da racionalidade por excelência.
O que, simbolicamente, dá no mesmo.